Saturday, February 20, 2010

279) China: entrando no clube das potências

Desenvolvimento pacífico da China, ou como a China pretende entrar para o clube das potências
Marcelo dos Santos Netto
Mundorama: 19 Feb 2010

A ascensão econômica da China gera uma esperada inquietação por parte de vizinhos como Índia, Japão e Rússia. Acredita-se que potências ascendentes fatalmente aspirem à hegemonia, gerando atritos com as potências já consolidadas e ameaçando a estabilidade das relações internacionais. A China parece consciente disto, como demonstraria o teor do “China’s Peaceful Development Road”. Publicado em 2005 pelo Conselho de Estado, este documento anuncia a forma como a China pretende se tornar uma potência: em termos benévolos e cooperativos, baseados para isso em uma “tradição pacifista” elaborada com este fim. O “China’s Peaceful…” seria assim o cartão de apresentação chinês diante do clube das potências, na qual se incluem não apenas os países centrais, como também os que possuem interesse no status quo. Logo, uma análise sobre este documento poderia revelar o discurso pelo qual a China compreende a si mesma no pós-Guerra Fria, indício relevante de como pretende conduzir suas ações políticas e diplomáticas neste ambiente.

A ideia de um “desenvolvimento pacífico” surgiu nos meios acadêmicos chineses a partir do “novo conceito de segurança”. Lançado ao fim dos anos de 1990, este conceito sugere que a segurança internacional deveria abandonar as divergências ideológicas, descartar a mentalidade da Guerra Fria e recusar as suspeitas e hostilidades mútuas, facilitando assim a cooperação (Liping, 2010). Dessa forma, o “China’s Peaceful…” seria o esforço de tranquilizar o clube das potências quanto à ascensão chinesa, que preferem definir modestamente como “desenvolvimento”; porém, longe de submissão, o documento é uma autoafirmação que a China realiza de maneira ambivalente, pretendendo condescender para assim obter voz. Vislumbrar estes fatos demanda analisar o tanto sentido direto quanto o indireto do “China’s Peaceful…”. Isto tornaria possível entender como a China busca se inserir no mundo, bem como o que reclama para si diante deste mesmo mundo (sobre esta estratégia, cf. para mais detalhes Todorov, 1985; 1988; 1996).

A abordagem proposta demanda começar pelo sentido direto. Este se revela pelo vocabulário do pensamento institucionalista, aos quais o “China’s Peaceful…” recorre para se expressar. No primeiro capítulo, o documento anuncia que “peace, opening-up,cooperation, harmony and win-win are our policy, our idea, our principle and our pursuit” (2005 – grifos nossos). Com isso, parece revelar a intenção de se adequar às tendências globais, apelando para isso à racionalidade que acreditam conduzir a arquitetura institucional das relações internacionais. O maoísmo revolucionário é substituído assim por uma adaptação ao discurso institucionalista que acreditam ser vigente, fato que sinalizaria inclinações cooperativas. Se não isso, ao menos indicaria que a China reconhece que a boa vizinhança internacional deverá ocorrer nestes termos, supostamente universalizados com a queda do contraponto soviético, a ascensão do Consenso de Washington e o advento da globalização.

No entanto, estes termos institucionalistas ainda suscitariam intranquilidade. Afinal, só existe necessidade de cooperação onde há conflito. Eis por que o documento prossegue seu argumento explicando que a paz seria o caminho inevitável do desenvolvimento chinês. Edifica para isso uma suposta “tradição pacífica”, sobre a qual baseia a identidade internacional chinesa. O documento lembra inicialmente que a China sofrera humilhações na Guerra do Ópio nos anos de 1840, fato que a inclinou assiduamente à eliminação da guerra. Então prossegue demonstrando a índole pacífica chinesa com o exemplo do navegador chinês Zheng He, que alcançou outros países asiáticos e africanos ainda no século XIV, dos quais levou apenas porcelana, sedas e tecnologias, sem jamais conquistar territórios. E finalmente conclui lembrando que Deng Xiaoping declarou em 1970, por ocasião da entrada na ONU, que a China não busca, nunca buscou e jamais buscará a hegemonia (ibid).

Esta tradição é reveladora, por ser construída de forma comparada e ao mesmo tempo constrastada com a tradição ocidental. A história das grandes potências serve tanto de molde como de contraponto à identidade pacifista chinesa, revelando ambivalência que exige interpretação discursiva. Há inicialmente uma aproximação entre ambas as histórias, realizada nos mesmos termos ocidentais: experiência de guerras, passado de navegações, participação relevante em organismos internacionais. Em seguida há um afastamento: na China as guerras causaram derrota e gosto pela paz; as navegações foram pacíficas; e a política mundial tem sido respeitosa.

Ou seja, em termos diretos, a China exige ser percebida como potência porque teria história, racionalidade e relevância que lhes atesta esta condição. No entanto, o tom procura contornar a agressividade através de um discurso cooperativo, apoiado por uma tradição pacifista. Os termos diretos do “China’s Peaceful…” seriam assim de afeição, uma vez que o status de potência precisaria ser concedido pelas potências estabelecidas. Para ingressar no clube das potências, não basta apenas possuir recursos para tal: é preciso ser reconhecido pelos integrantes deste clube.

A contradição surge na medida em que a China propõe se desenvolver em termos institucionalistas. Neste sentido, o documento revela indiretamente que a China pretende se impor, porque o clube das potências ainda é percebido como disputa de poder. As relações internacionais talvez soem mais inclusivas e cooperativas nestes termos, porque evocam multilateralismo; mas nem por isso seriam menos propensas aos jogos de política, como indiciam as esperadas assimetrias que se revelam na teoria institucional, sem as quais esta nem mesmo poderia ser rotulada como “institucional”. Entrar no clube das potências seria assim uma questão de ser temido. Como dito acima, só há cooperação porque há atrito – e haverá atrito porque a China é potência o bastante para causá-lo, como insinua pelo uso deste vocabulário.

Dessa forma, o “China’s Peaceful…” condescende por um lado com o clube das potências, buscando o reconhecimento deste através da adaptação; por outro reconhece novamente os termos deste clube, cujo acesso é percebido como uma questão de se impor; e ainda repudia as condições do clube, porque a história e relevância chinesas são dignas de potência, mas constituíram uma (con)tradição pacifista, diferente do que houve aos demais países do clube. Não que estes contrastes representem dificuldades: na verdade é possível que o desenvolvimento pacífico dependa justamente deste conjunto de incongruências – aliás, como a própria realidade humana.

Assim, o “China’s Peaceful…” torna possível entender o impacto do discurso sobre a identidade internacional. A “invenção” desta tradição pacifista caracteriza a história como narrativa, permitindo vislumbrar como a coerência dos fatos dependeria mais de interpretação do que de racionalização, dificilmente havendo objetividade neste processo. Desde quando a China de Zheng He, das Guerras do Ópio e mesmo de Deng Xiaoping seriam a mesma do “China’s Peaceful…”? Ora, a partir do momento em que estes fatos são concatenados em uma tradição histórica, como pretende o documento. Não que isto constitua uma retórica insincera, como faria supor a ideia de história como “invenção tradicionalista”. Em verdade, a vida social exige estas representações, porque depende destas para que faça sentido. A análise de discurso aqui realizada não ignora as batalhas de Gêngis Khan, a Revolução Cultural e outros episódios semelhantes; antes, prefere ressaltar a importância das tradições e identidades no estudo das relações internacionais, que também seriam sujeitas ao discurso e à ideologia.

BIBLIOGRAFIA

CHU, Shulong; REN, Xiao. China’s Peaceful Development Doctrine: visions from China. Beijing: The National Bureau of Asian Research, 2009.
LIPING, Xia. The New Security Concept In China’s New Thinking Of International Strategy. Disponível em: [http://www.irchina.org/en/news/view.asp?id=317]. Acesso em: 23 de janeiro de 2010.
Partido Comunista da China. China’s Peaceful Development Way. Disponível em: [http://www.china.org.cn/english/2005/Dec/152669.htm]. Acesso em: 25 de janeiro de 2010.
__________. China’s New Strategic Concept. Disponível em: [http://www.mfa.gov.cn]. Acesso em: 26 de Janeiro de 2010
TODOROV, Tzvetan. Simbolismo e Interpretação. Lisboa: Edições 70, 1988.
__________. Teorias do Símbolo. Lisboa: Edições 70, 1985.
__________. A Vida em Comum: ensaios de antropologia geral. Campinas: Papirus, l996.
Marcelo dos Santos Netto é mestrando em Relações Internacionais da Pontifícia Universdade Católica de Minas Gerais – PUC-MInas (msanetto@gmail.com).

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