Aniversário: Sociedade sem classes de Mao é recordação distante quando país celebra 60 anos do regime comunista
Shai Oster, de Hangzhou, China
The Wall Street Journal, 30/09/2009
Quando um jovem rico atropelou e matou outro de origem modesta num racha, em maio, o incidente detonou um inflamado conflito de classe nesta próspera cidade do leste da China.
O motorista de 20 anos, Hu Bin, foi criado como o mimado filho de uma família de comerciantes rica o suficiente para comprar vários carros e apartamentos ao longo das avenidas arborizadas de Hangzhou. A vítima, Tan Zhuo, um engenheiro de telecomunicações de 25 anos, veio de um vilarejo no interior onde seus pais desempregados lutaram para arrumar dinheiro e realizar o sonho do filho de fazer faculdade em Hangzhou, uma das cidades mais ricas da China.
"Garotos ricos em carros de luxo transformam as ruas da cidade em pista de F1", gritava a manchete de um tablóide da cidade no dia seguinte ao do acidente, detonando uma onda de indignação. Fotos do motorista em seu Mitsubishi vermelho perto do corpo da vítima foram distribuídas de forma viral na internet, transformando mais uma das 70 mil mortes ao ano por acidentes de trânsito na China numa parábola sobre injustiça social que ganhou eco entre milhões de chineses.
Na véspera do aniversário de 60 anos do regime comunista que supostamente chegou ao poder para realizar a utopia de uma sociedade sem classes, a China está, em vez disso, envolvida numa divisão de classes renovada. A frase em mandarim "fen fu", que quer dizer odiar os ricos, foi cunhada nos últimos meses para expressar o amargo ressentimento popular.
Há 30 anos, o então líder Deng Xiaoping lançou o milagre econômico chinês usando o slogan "ficar rico é a glória". Ele acrescentou, no entanto, o alerta: "Deixem alguns ficar ricos primeiro". Eles deixaram, mas a maioria não ficou rica.
As reformas de Deng criaram uma sociedade que é mais rica e mais dividida do que antes. A China está dividida entre áreas rurais pobres e cidades mais ricas; entre regiões costeiras desenvolvidas e áreas mais pobres no interior; entre pessoas com educação e sem educação. Mas esses abismos crescentes, que são amplamente considerados como a raiz da inquietação social, são apenas parte do problema.
Episódios como o atropelamento em Hangzhou expõem um ressentimento igualmente profundo: a percepção de que os novos ricos, graças ao dinheiro e a conexões políticas, estão consolidando seu status na sociedade chinesa e bloqueando as aspirações dos menos favorecidos.
Com a informação fluindo instantaneamente para mais de 300 milhões de usuários de internet, os tropeços dos ricos são rápido material para a fúria pública. "Há mais comunicação de todos os tipos", diz David Goodman, autor de "The New Rich in China" ("Os Novos Ricos da China"). "Junto com os politicamente poderosos, há agora os ricos, e eles também são politicamente poderosos. Há muita suspeita contra eles."
Cada vez mais a animosidade se concentra nos filhos e filhas de uma geração de trabalhadores que executou as reformas econômicas de Deng, desencadeando a onda capitalista no país. Hu, o piloto de rachas, tornou-se o símbolo do chamado "fu er dai", ou segunda geração de ricos, composta de jovens na faixa dos 20 anos e considerados como criados num mundo isolado e protegido, com padrões de justiça diferentes dos da maioria.
Em 7 de maio, por volta das 20h, o Mitsubishi envenenado de Hu atropelou Tan na faixa de pedestres de um cruzamento perto do bonito lago de Hangzhou. O impacto lançou o corpo de Tan a 20 metros de distância. Curiosos e jornalistas rapidamente correram ao local e viram meia dúzia de amigos de Hu se juntarem ao redor dele e consolá-lo. Enquanto Hu se sentava no carro com o rosto entre as mãos, os amigos fumavam cigarros e faziam piadas, ao mesmo tempo em que a polícia e a equipe de paramédicos chegavam.
As fotografias logo circularam online, espalhando uma onda de comentários irados de leitores chineses indignados com o comportamento insensível mostrado nas fotos.
Sob pressão popular, a polícia de Hangzhou convocou uma entrevista coletiva para o dia seguinte, quando estimou que a velocidade do carro estava em torno de 70 quilômetros por hora no momento do atropelamento. Eles desmentiram as alegações de que o motor e os pneus do carro de Hu haviam sido ilegalmente modificados para dar mais potência ao veículo - apesar dos testemunhos de que ele estava em alta velocidade, o que poderia detonar punições criminais mais duras.
A opinião pública chinesa sentiu o cheiro de mutreta e blogs se encheram de comentários indignados. "Vejamos como os pais ricos vão resolver esse assunto para o filho!", escreveu um deles.
Cerca de 14 mil comentários foram deixados num único blog, analisando a velocidade e a trajetória do corpo de Tan quando foi atingido pelo carro. Outros sugeriram que a família de Hu usa contatos para atenuar o crime. Num desafio acalorado e incomum, os estudantes da Universidade Zhejiang divulgaram uma carta aberta ao prefeito, exigindo uma nova investigação sobre a morte do engenheiro, um ex-aluno.
Mais tarde, à noite, centenas de estudantes e residentes se juntaram para uma vigília à luz de velas no local do atropelamento. Outros estudantes criaram sites para registrar e armazenar depoimentos em memória de Tan. Na manhã seguinte, a polícia prendeu o jovem motorista para novas investigações.
Em 11 de maio, dia do funeral de Tan, mais de mil pessoas se perfilaram nas ruas, numa rara demonstração pública de solidariedade, enquanto o cortejo passava. Depois do extravazamento de raiva, naquela mesma noite a polícia local divulgou comunicado prometendo investigar exaustivamente o acidente.
Em seguida, uma semana depois do atropelamento, a polícia local convocou uma segunda entrevista coletiva. Desta vez, admitiu que a estimativa de velocidade inicial estava errada, dobrou o número e reconheceu que o motor do carro tinha sido envenenado. As admissões apenas aumentaram a suspeita de que os pais do motorista estavam usando conexões para tirar o filho da enrascada.
Diante da indignação pública, a família de Hu concordou em dar aos pais de Tan uma indenização de 1,13 milhão de yuan, ou US$ 165 mil.
Ainda assim, a fúria popular voltou a eclodir em meados de julho, depois que um tribunal condenou Hu a três anos de prisão, o que foi considerado uma pena leve. Numa reviravolta inusitada, Hu parecia muito mais gordo nas fotos no tribunal do que na cena do acidente, detonando rumores na internet de que a família dele havia pago para alguém aparecer no lugar dele. Autoridades chinesas negaram veementemente isso.
O pai da vítima, Tan Yue, tem criticado abertamente a sentença judicial. Ele é um dos que duvidam que a pessoa que agora cumpre pena seja realmente Hu. A família de Hu disse por um advogado que não faria comentários.
Alto, magro, com os mesmos olhos do filho, Tan Yue diz que o acidente captou tanta atenção por causa das trapalhadas do governo na investigação. Os moradores de Hangzhou estavam "com raiva dessa segunda geração de garotos ricos que fazem corridas nas ruas", diz ele. "O governo não podia lhes garantir segurança nem mesmo para atravessar uma rua. Diante disso, a tentativa de controlar a mídia aumentou a ira popular", acrescenta.
Tan Zhuo, o engenheiro morto, era uma história de sucesso da China moderna, um exemplo de como, quando o sistema funciona, alguém vindo de uma família relativamente pobre pode melhorar de vida trabalhando duro e estudando para conquistar um cobiçado trabalho bem remunerado.
Ele nasceu num vilarejo a uma hora de viagem pelas florestas de bambu de Changsha, a capital da Província central de Hunan, e cresceu numa casa simples de cimento, de três andares, construída pelos país. O pai trabalhava como administrador de uma empresa de transportes e logística estatal e a mãe para uma estatal que preparava refeições. Ambos foram demitidos alguns anos atrás e tiveram que batalhar para encontrar trabalho vendendo qualquer coisa, de tapetes a roupas íntimas, ou fazendo tarefas temporárias em uma escola.
Tan Zhuo era um estudante promissor, que conquistou o terceiro lugar num campeonato de matemática do município quando estava na escola secundária.
"Você tem de contar consigo mesmo porque eu não tenho nem as conexões nem os recursos para ajudá-lo", recorda-se Tan Yue de ter dito ao filho, em pé no quarto de Tan Zhuo. "Mas, nessa sociedade, você não precisa de dinheiro ou empurrão social para conseguir sua meta. Você pode se dar bem por conta própria."
Na Universidade Zhejiang, Tan Zhuo formou-se em telecomunicações. Sua família suou para pagar US$ 1,4 mil por ano pelo curso, alimentação e livros. Mas quando ele se formou, em 2006, os problemas da família desapareceram. Ele foi contratado pela ECI Telecom, uma empresa israelense de telecomunicações com divisões de pesquisa e desenvolvimento na cidade, com um salário anual de 100 mil yuans, ou US$ 14,6 mil, equivalente a sete vezes a renda média anual na China. Ele mandava dinheiro para a família e planejava construir uma casa para os pais.
A vida de Hu era um contraste marcante. Ele cresceu perto da área do Lago Oeste em Hangzhou, que é ocupada por lojas de grife, restaurantes caros e concessionárias de automóveis - inclusive duas da Ferrari. Os pais eram comerciantes donos de uma empresa de vestuário. Até o dia do acidente, Hu era estudante do curso de educação física na cidade.
Ao que parece, a grande paixão dele eram os carros. Ele se juntou a um grupo de jovens ricos que modificava ilegalmente carros esportivos, segundo autoridades locais. O Clube Internacional de Corridas F2 até hoje mantém na parede a foto de Hu quando ele conquistou o primeiro lugar numa corrida de kart no ano passado. A família lhe deu de presente um esportivo Mitsubishi de segunda mão, que foi coberto com decalques do clube.
No Automóvel Clube de Hangzhou, um ponto de encontro tradicional para os adeptos da modalidade drag-racing, decorado com pneus e calotas de cromo, o proprietário, Wang Ke, recorda ter consertado o pedal do carro de Hu. Seus clientes são, na maioria das vezes, filhos de empresários privados ou que vivem no exterior fascinados por carros envenenados.
Apesar disso, Wang acredita que os meios de comunicação do país não foram justos com Hu. "Se Hu é rico, muito outros também são", diz ele.
Na China, classe é um conceito infestado por décadas de conflitos sangrentos e turbulência política. O Partido Comunista chinês chegou ao poder há 60 anos prometendo uma utópica sociedade de trabalhadores sem classes.
Nos primeiros anos da chegada dos comunistas ao poder, em 1949, cerca de 1 milhão de proprietários de imóveis foram mortos no que seria o primeiro de uma série de conflitos de classe liderados pelo dirigente do partido, Mao Tsé-tung, na tentativa de eliminar os capitalistas da China. As campanhas chegaram ao clímax ideológico na Revolução Cultural, que durou de 1966 a 1976, quando qualquer pessoa com passado de riqueza poderia ser denunciado como contrarrevolucionário, o que pôs a China à beira de uma guerra civil.
Hoje, as campanhas de propaganda do governo apelam para a construção de uma "Sociedade Harmoniosa". Bilhões de dólares foram prometidos para a reforma do sistema de saúde e da educação, num esforço para melhorar as condições sociais, mas as críticas de corrupção crescente e favorecimento não param de surgir.
Até agora, o índice de criminalidade na China é menor que em outros países de crescimento rápido, como o Brasil. E o país é mais estável que a Índia. Mas, se a questão não for tratada, alguns observadores temem que o sentimento crescente de impotência política possa mudar das insatisfações localizadas contra funcionários locais corruptos e contra os novos ricos para insatisfação mais ampla em relação ao regime.
O sistema legal chinês é, na maioria dos casos, parte do problema. Antes de definir uma sentença, os juízes criminais costumam levar em conta quanto de compensação financeira foi pago às vítimas e famílias, criando a impressão de que os ricos podem literalmente se livrar de assassinatos.
Em agosto, na cidade de Chongqing, no sul do país, um gerente de hotel acusado de espancar até a morte uma mãe cujo filho havia roubado uma flor de plástico do lobby do hotel pagou 285 mil yuans, ou US$ 41,7 mil, à família da morta. Em comentários amplamente divulgados, o gerente teria dito a uma testemunha, depois do espancamento, que, "na pior das hipóteses, vou gastar 2 milhões de yuans para comprar a vida dessa mulher". Ele aguarda julgamento e pode ser condenado à prisão, segundo a polícia local.
Em Hangzhou, as autoridades prometeram combater as corridas e até pintaram grandes corações nos cruzamentos para encorajar a cautela dos motoristas. Mas, poucas semanas depois da condenação de Hu, num cruzamento próximo do local do acidente de Tan, uma jovem migrante que trabalhava como garçonete foi atropelada e morta pelo motorista de 28 anos de um utilitário esportivo Porsche.
"Por que você acha que os filhos dos ricos agem dessa maneira?", perguntou Dai Wangchao, 21 anos, o namorado da vítima. "Porque eles acham que não serão punidos." E acrescentou: "Se fosse o contrário, eu teria de passar um longo tempo na prisão".
Depois do julgamento de Hu, Tan Yue retornou a sua cidade natal carregando uma mala preta que continha um punhado de prêmios acadêmicos do filho, sua carteira de motorista, o cartão de filiação ao Partido Comunista e algumas fotografias. Cada vez que abrem a mala, os pais choram. Seguindo a tradição, Tan Yue planejava queimar os objetos, mas agora acha que vai mantê-los e construir um memorial para o filho.
Ele pensa em usar o dinheiro da indenização para construir uma nova casa e comprar seguro saúde para ele e a mulher. "Tudo para nós era aquele filho. Agora, não temos nada", diz Tan.
(Colaboraram Jeremy Chan e Sue Feng)
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