O dragão e sua máscara de panda
Ricardo Balthazar
Valor Econômico, 10.11.2009
A China é um animal intrigante. A maioria das pessoas se acostumou a ver o país como um dragão assustador que não tem medo de usar sua força para esmagar os competidores. As autoridades chinesas detestam a caricatura. Elas preferem apresentar o país ao resto do mundo como se ele fosse um panda, um bicho de índole pacífica e sempre pronto a fazer amigos.
As duas máscaras foram exibidas nos últimos meses. Enquanto as economias avançadas afundavam sob os destroços da crise financeira, a China atravessou a longa recessão global crescendo num passo acelerado. O apetite insaciável do panda por alimentos e matérias-primas ajudou o Brasil e outros países emergentes a sair mais rápido da crise.
O cheiro de enxofre voltou com o fim da recessão. A China amarrou o yuan ao dólar para enfrentar a crise e continua mantendo sua moeda artificialmente desvalorizada. A proteção das asas do dragão assegura vantagens enormes para os exportadores chineses e prejudica indústrias de países como o Brasil, que estão perdendo o fôlego na corrida com os rivais.
A crise internacional tornou evidentes os riscos e as oportunidades que a expansão da China traz para o resto do mundo. Mas os últimos meses também serviram para reforçar estereótipos e alimentar equívocos sobre as intenções da China, suas prioridades e sua capacidade de realizar suas ambições.
Um bom exemplo é a preocupação que o crescente envolvimento entre a China e a América Latina desperta nos Estados Unidos. Muitos americanos acreditam que a China decidiu se aproveitar da perda de influência que os EUA sofreram na vizinhança nos últimos tempos e tem um plano secreto para ocupar seu lugar.
Trata-se de um exagero, como ficou claro durante um debate organizado na semana passada em Washington pela Universidade Nacional de Defesa, ligada ao governo americano, e pela Instituição Brookings, um influente centro de estudos. A China está longe de assumir um papel hegemônico como o exercido pelos EUA na região e há motivos para duvidar que fará isso um dia.
O único país da vizinhança que parece realmente desejar que a China ofereça um contrapeso político à influência dos EUA é a Venezuela, mas as autoridades chinesas jamais demonstraram qualquer simpatia pelas ambições bolivarianas do presidente venezuelano, Hugo Chávez. Não há razão para alarme, diz Dan Erikson, um especialista do Diálogo Interamericano. O que todo mundo quer na América Latina é mais comércio e investimentos.
Países como o Brasil saíram da crise convencidos de que precisam fazer de tudo para garantir seu acesso a mercados externos diversificados e evitar os riscos criados por uma dependência excessiva da economia americana. Mas muitos observadores duvidam que a China terá condições de continuar sustentando por muito tempo as taxas de crescimento exuberantes que exibe atualmente.
A demanda chinesa foi estimulada por dois fatores que tendem a perder importância no futuro, a decisão do governo de aproveitar a crise para acumular estoques de matérias-primas e os investimentos em infraestrutura financiados pelo gigantesco pacote de estímulo econômico lançado no auge da recessão global.
O câmbio e os prejuízos sofridos pelas indústrias que competem diretamente com os exportadores chineses têm alimentado tensões em toda parte. O Brasil e outros países latino-americanos impuseram tarifas para proteger indústrias domésticas contra as importações chinesas 142 vezes na última década, segundo o economista Jiang Shixue, da Academia Chinesa de Ciências Sociais.
Mas o abraço com o panda também traz benefícios que raramente são lembrados. Muitas empresas têm aproveitado a aproximação com a China para se modernizar e se tornar mais competitivas. Máquinas, insumos e componentes representam mais de três quartos do que o Brasil importa da China hoje, calcula o secretário-executivo do Conselho Empresarial Brasil-China, Rodrigo Maciel.
Ele acha que falta às empresas brasileiras uma estratégia para explorar as inúmeras vantagens oferecidas pelo avanço da China. O governo chinês tem sido pressionado pelo mundo inteiro a adotar medidas que estimulem o enorme potencial de consumo do seu mercado doméstico. Poucas empresas brasileiras estão se preparando para o dia em que essas pressões produzirão resultados.
Quem teve a última palavra no debate da semana passada em Washington foi Charles Freeman, um veterano diplomata americano que foi o intérprete do presidente Richard Nixon na histórica viagem oficial que reatou as relações diplomáticas entre os EUA e a China em 1972.
Ele lembrou que os chineses cobiçam os recursos naturais da América Latina desde a época em que os conquistadores espanhóis chegaram ao continente e previu que a relação do país com a região só ganhará importância nos próximos anos. Falta os empresários da região darem o próximo passo. Estudem mandarim e aprendam a vender seus produtos para os chineses também, Freeman sugeriu.
Ricardo Balthazar é correspondente em Washington.
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