Ásia: País busca modelo de desenvolvimento que privilegia tecnologia doméstica, mas tem longo caminho a percorrer
Falta de inovação ameaça frear a China
Dexter Roberts e Pete Engardio, BusinessWeek
Valor Econômico, 06/11/2009, pág. A14
No começo de outubro, durante a parada de comemoração do 60º aniversário da República Popular da China, tanques e mísseis passaram diante da Cidade Proibida e pela avenida Chang'an, em Pequim. Batalhões de soldados desfilaram em passo de ganso em perfeita harmonia. No céu, caças voavam em formação.
Mas logo atrás dessa extravagância militar estavam carros pesados exibindo um lado menos bélico da China, que suas lideranças chamam de "inovações nativas". Em um deles, um microscópio de 2,5 metros de altura, tubos de ensaio gigantes cheios de um líquido azul e um telescópio branco simbolizavam as conquistas científicas e tecnológicas da China. Outro carro tinha uma réplica de um trem-bala e um jato de passageiros, representando as ambições da China na área de transporte. Um carro dedicado às energias renováveis estava cheio de moinhos de vento e plataformas de petróleo, cercado por centenas de trabalhadores do setor de energia com capacetes vermelhos, cada um deles carregando um painel solar.
Em um palco acima do retrato gigante de Mao Tsé-tung no portão da Paz Celestial, o presidente Hu Jintao assistia o desfile. "O povo chinês se ergueu", disse Hu, citando Mao, que disse essas palavras no mesmo lugar 60 anos antes.
Essa sensação de triunfo permeia a China hoje em dia. A rápida recuperação da economia da China continental, depois da explosão da crise financeira mundial, parece ter vingado sua marca de capitalismo liderado pelo Estado. Enquanto o Ocidente luta para se recuperar, a China caminha para crescer 8% este ano, preparando-se para tomar o lugar do Japão de segunda maior economia do mundo - e o da Alemanha de maior exportador. Agora a China continental está entrando em novos setores, anunciando companhias aéreas domésticas, carros elétricos e trens de alta velocidade.
Mas uma investigação das estatísticas e o alarde em relação aos avanços em setores estratégicos mostram que a China não parece estar preparada para ser catapultada a uma posição de liderança econômica mundial. Especialistas familiarizados com as conquistas que os chineses vêm perseguindo ativamente dizem que as tecnologias que as sustentam foram em grande parte desenvolvidas em outros países. Não há a Sony chinesa, uma Toyota ou uma Samsung no horizonte. Embora o pacote de estímulo de US$ 586 bilhões do governo chinês e um aumento de 150% nos empréstimos bancários estejam estimulando um crescimento impressionante, "a questão", segundo Stephen Roach, presidente do conselho de administração do Morgan Stanley na Ásia, "é a qualidade desse crescimento".
Segundo já admitiu o próprio governo, não se pode mais contar com o modelo econômico que conduziu a China por três décadas. A China continental vem prosperando principalmente pelo setor da construção e a exportação de todos os tipos de bens de consumo produzidos em fábricas que aproveitam a mão-de-obra barata; os trabalhadores depositavam suas economias em bancos estatais, que então emprestavam o dinheiro para companhias produzirem mais coisas. Mas o know-how tecnológico e administrativo veio principalmente das multinacionais, e os custos - poluição, deterioração dos serviços sociais e uma diferença enorme entre a população urbana rica e a população rural pobre - são em grande parte ignorados. Esse modelo alimentou um crescimento fenomenal, que Hu e outros chamam de "desequilibrado" e "insustentável".
Portanto, nos últimos anos, o governo chinês vem proclamando uma nova visão econômica. Os principais elementos: as fábricas sujas darão lugar a indústrias preocupadas com energias renováveis e um setor de serviços crescente; os consumidores chineses, em vez dos pressionados americanos e europeus, é que darão sustentação à demanda; e, em vez de produzir produtos copiados que rendem poucos lucros, as companhias chinesas deverão criar produtos inovadores baseados em tecnologias desenvolvidas no país.
Mas enquanto o presidente dos EUA, Barack Obama, se prepara para sua primeira visita à China, no dia 15, alguns economistas estão adotando uma postura cética em relação à evolução da China. Embora o governo tenha honrado muitos dos compromissos de abertura de mercado que fez para poder entrar para a Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001, reformas prometidas, como a permissão de mais investimentos estrangeiros em telecomunicações e serviços financeiros, estão paralisadas. Nos últimos três anos, um fluxo constante de diretivas emitidas por uma série de ministérios e pela Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma (CNDR) vêm enfatizando o controle que o estado exerce sobre a economia. Em junho, por exemplo, a comissão ordenou que sempre que possível apenas os produtos fabricados por companhias de controle chinês sejam usados nos projetos bancados pelo governo.
É fácil perceber o reaparecimento do Estado. Segundo estimativa do Standard Chartered Bank, a ampla maioria dos novos empréstimos está sendo direcionada para empresas controladas pelo governo, por exemplo, enquanto que menos de 20% acabam nas mãos de pequenas e médias empresas, que normalmente são privadas. E, em setores estratégicos, como o da fabricação de turbinas eólicas e o de usinas nucleares, o governo chinês está favorecendo suas grandes empresas e tentando reduzir gradualmente a participação das companhias estrangeiras. "Eles estão recolhendo o tapete vermelho", afirma Joerg Wuttke, presidente da Câmara Europeia na China, que recentemente divulgou um relatório de 584 páginas que afirma que a China vem pisando no freio na abertura de sua economia. "O foco da China parece ter mudado da aceleração das reformas de mercado para um modelo mais controlado pelo Estado. Isso é muito preocupante", afirma um funcionário de uma associação de classe dos Estados Unidos.
Além de agravar os atritos comerciais, o renovado pendor do Partido Comunista por controlar tudo poderá minar a competitividade da China nos mercados internacionais. Restringir a capacidade dos estrangeiros de fazer negócios na China tornará a vida mais fácil para as companhias chinesas em casa; o lado ruim é que isso as impedirá de conseguir as habilidades necessárias para serem bem-sucedidas fora da China continental. E canalizar recursos para companhias estatais e insiders deixará os empresários criativos famintos por capital. "O governo quer estimular a inovação e a criação de empregos mas está fazendo o oposto", diz o economista Xu Xiaonian, da China Europe International Business School, de Xangai.
Já há sinais de que as políticas de Pequim estão minando a transição para uma economia mais equilibrada, que possa estimular o crescimento em todas as partes do mundo. Na última década, os gastos do consumidor - que deveriam ser o principal suporte da economia chinesa - caíram de 45% do PIB para 35%. O Morgan Stanley estima que 88% do crescimento do PIB deste ano virá da fonte usual: investimentos em infraestrutura, imóveis e um número ainda maior de linhas de produção. Nos últimos dois anos, a capacidade de produção da aço da China cresceu em um terço e a capacidade ociosa da China continental este ano será quase igual à produção de aço combinada de EUA e Japão. "Na verdade, vimos um recuo para a velha fórmula de apoio em grande escala à produção industrial e às exportações", diz David Hoffman, diretor-gerente da China para o Conference Board.
Para ter uma ideia do que pode estar pela frente se a China não conseguir transformar sua economia, é só passar pela cidade de Dongguan. As milhares de fábricas localizadas no centro industrial do delta do rio Pérola produzem TVs, móveis, brinquedos e milhares de outros produtos para os consumidores de todas as partes do mundo. Mas, com a queda das exportações, Dongguan está cambaleando. No distrito de Changping, outrora apelidado de "pequena Hong Kong", fábricas fechadas estão cobertas de mato. É claro que a economia de da Província de Guangdong caminha para um crescimento de 9% este ano, mas isso vai ocorrer principalmente por causa dos enormes gastos do governo com obras públicas, como a ampliação de um aeroporto e a construção de uma usina nuclear.
Em outros bolsões do país, o governo vêm conseguindo um progresso bem maior rumo à nova visão econômica. A China está promovendo agressivamente a energia eólica, a iluminação mais ambientalmente correta e os três de alta velocidade. Xangai, Pequim e dezenas de outras cidades estão construindo vastas redes subterrâneas para complementar as ferrovias já existentes. Para convencer os cidadãos a gastarem mais e economizarem menos, o governo está ampliando o sistema público de saúde e subsidiando pequenos automóveis e utensílios elétricos. Milhões de pequenas empresas privadas estão surgindo e grandes empresas estatais que proporcionavam benefícios "do berço ao túmulo" estão sendo enxugadas. Cidades e províncias estão aumentando os gastos com pesquisa, reciclando trabalhadores e cortejando investimentos em novos setores, como o de biotecnologia, que está atraindo cientistas chineses que trabalhavam nos EUA.
Entretanto, a China tem um longo caminho a percorrer em inovação. O continente aumentou dramaticamente os gastos com pesquisas e exibe o maior número de profissionais formados em ciências e engenharia. Mas além de jogos da internet, o país cria poucos produtos inovadores, graças em grande medida ao problema perene da pirataria desenfreada. No ano passado, a China exportou US$ 416 bilhões em produtos de alta tecnologia. Mas, subtraindo as operações da China continental das atividades das empresas de Taiwan que operam sob contrato e as contribuições de empresas como a Nokia, Samsung e Hewlett-Packard (HP), a China vira um peso-leve em produtos eletrônicos. Além da cerveja Tsingtao e dos refrigeradores baratos Haier, "a China tem presença nula nos EUA", afirma Kenneth J. DeWoskin, diretor do China Research & Insight Centre da Deloitte & Touche. Em vez disso, a maior parte das companhias da China continental explora tecnologias já existentes e competem com os grandes volumes e custos baixos nos mercados de commodities.
Tome como exemplo os automóveis. Durante décadas, o governo tentou estimular o setor. Mas Volkswagen (VW), Toyota, Buick e outras marcas estrangeiras dominam a produção de sedãs de médio porte e de utilitários esportivos (SUVs). Montadoras domésticas como a BYD Auto, a Geely e a Chery vêm prosperando com o desenvolvimento de subcompactos, vendidos por até US$ 4,4 mil. Elas agora são a maior esperança da China no segmento de veículos elétricos e híbridos. Enquanto isso, o governo está aumentou seu apoio. Para atender uma meta de produzir 500 mil desses veículos até 2011, o Ministério da Ciência e Tecnologia pretende colocar 60 mil táxis e ônibus elétricos nas ruas e oferecer subsídios para os compradores.
A BYD Auto vem fazendo mais "barulho". A companhia de Shenzhen espera vender este ano 400 mil automóveis e sua controladora é uma das maiores produtoras de baterias de íons de lítio para celulares, PCs e outros aparelhos do mundo. No ano que vem ela pretende lançar nos EUA o e6, um veículo elétrico para cinco passageiros que pode ser recarregado na tomada e segundo a companhia terá uma autonomia de 398 quilômetros. O preço da ação da BYD subiu tanto que o famoso investidor americano Warren Buffett já lucrou mais de US$ 1 bilhão com a participação de 10% que tem na companhia. A BYD promete ser a maior fabricante de automóveis da China até 2015 e superar a Toyota como a maior marca até 2025, produzindo 10 milhões de veículos por ano - 50% para exportar.
A BYD tem um longo caminho a percorrer. Este ano, ela terá sorte de conseguir igualar as exportações recordes de 8 mil veículos do ano passado, todos eles vendidos na Rússia e países em desenvolvimento da África e América Latina. Ela afirma que entregou apenas cem de seus híbridos "plug-in" F3DM, vendidos a US$ 22 mil, na China este ano - algo muito distante da meta de vendas de 4 mil unidades. A maior vantagem da BYD? Não é o design, a tecnologia de ponta nem as técnicas modernas de fabricação. É uma bateria bem convencional que a BYD consegue produzir bem barato. "Fabricar produtos baratos é a chave para o desenvolvimento da indústria dos carros elétricos", afirma Henry Z. Li, gerente-geral de vendas internacionais da BYD.
A BYD recusou um pedido para um visita às suas fábricas, mas aqueles que já estiveram nelas afirmam que suas baterias e motores elétricos são montados a mão e linhas de montagem, por trabalhadores de uniforme azul, e não por robôs, algo que já se tornou um padrão no setor. A dúvida é a capacidade da BYD ou de outras montadoras chinesas de atenderem os rígidos padrões de segurança da União Europeia e dos EUA. "Em mercados maduros, as barreiras são bastante claras e os padrões muito elevados", diz Yale Zhang, diretor da consultoria CSM.
"Desmonte" outros sucessos bastante elogiados da inovação nativa e você verá que há pouca coisa de chinesa neles. O governo há muito tempo deseja ter sua própria indústria aeronáutica e sua primeira oferta - um jato de passageiros com 90 assentos chamado ARJ21 - deverá chegar ao mercado no ano que vem. Em seguida, será a vez do C919, um avião para trajetos médios com até 190 assentos, que a estatal Commercial Aircraft Corp. of China (Comac) anunciou em de setembro. O avião, cujo início de entregas está previsto para 2016, pretende competir diretamente com a Boeing e a Airbus.
Especialistas ocidentais familiarizados com os aviões da Comac afirmam que eles são baseados em aviões mais antigos projetados pela McDonnell Douglas há duas décadas, antes de a companhia americana ter sido adquirida pela Boeing. Enquanto isso, as turbinas e outros sistemas importantes do ARJ21 são fornecidos por fabricantes ocidentais como a Honeywell, General Electric e Rockwell Collins. "A China quer ser autossuficiente", afirma Nathan K. Smith, analista da consultoria Frost & Sullivan. "Mas ela não tem capacidade para desenvolver esses aviões sem a tecnologia ocidental." As possibilidades da Comac competir com a Boeing e a Airbus fora da China, mesmo daqui a duas décadas, "são um tiro no escuro", afirma Smith.
Algumas políticas industriais chinesas fracassaram. Por exemplo, o governo há muito tempo vê a fabricação de semicondutores como um setor importante e oito novas fábricas de placas de silício - algumas bastante subsidiadas - foram construídas desde 2005. O objetivo era começar a competir com as fábricas de baixos custos que operam sob empreitada para firmas estrangeiras de projetos de chips. Mas as fábricas de placas de silício da China dependem de tecnologias que estão pelo menos duas gerações atrás das que estão sendo usadas por Taiwan, EUA, Japão e Coreia do Sul, e poucas são lucrativas. No pior momento da recessão, no primeiro trimestre, 60% da capacidade de produção da China estava ociosa. Mas, com as fábricas de placas de silício da próxima geração custando no mínimo US$ 3 bilhões, uma grande crise se aproxima para as fábricas chinesas, segundo Len Jelinek, analista da consultoria iSuppli. "A maior parte das companhias chinesas não tem a tecnologia e o dinheiro necessários para investir em pesquisa e desenvolvimento e assim permanecer no jogo", acredita ele.
Em razão dos muitos sinais de progresso da China, é fácil esquecer que ela continua sendo uma economia subdesenvolvida que enfrenta desafios enormes. Sim, ela possui uma população imensa e jovem, empresários e cientistas talentosos, um governo ambicioso - e muito dinheiro. Portanto, é provável que o governo acerte na fórmula algum dia. Mas as reformas econômicas da China já levam três décadas. Isso é bem mais que o tempo que Mao Tsé-tung e seus seguidores levara para impor sua marca extrema de socialismo. "O Japão e a Coreia do Sul levaram 30 anos para realizarem uma transformação parecida" para uma economia conduzida pela inovação, pelos gastos do consumidor e pelos serviços, diz Ding Li, economista da Academia de Ciências Sociais de Guangdong. "Nossas expectativas não podem ser altas demais."
(Copyright© 2009 The McGraw-Hill Companies Inc.)
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