O que é o 'novo protecionismo' chinês?
Dexter Roberts, BusinessWeek
Valor Econômico – 01/04/2010, pág. A14
Até não muito tempo atrás, os executivos ocidentais em viagem pela China podiam esperar recepções calorosas e banquetes com brindes intermináveis de maotai.
Comércio: USTR acusa Pequim de abusar de regulamentações e padrões que prejudicariam empresas americanas
Quase uma década depois de a China entrar para a Organização Mundial do Comércio (OMC), muitas empresas estrangeiras afirmam que a recepção calorosa que eles tinham antes esfriou. A China ainda pode ser altamente lucrativa, mas há quem questione por quanto tempo isso vai durar, uma vez que Pequim vem mudando as regras para estimular as companhias domésticas, especialmente as estatais. Um novo programa de aquisição de bens e serviços do governo conhecido como "inovação local" prevê regras que favorecem as empresas locais: ele poderá impedir vendas de bilhões de dólares por ano, segundo Joerg Wuttke, diretor da Câmara de Comércio da União Europeia na China.
O governo chinês impôs padrões rígidos para tudo, de telefones celulares a automóveis, sempre se referindo a eles de uma maneira que proporciona uma vantagem aos produtores domésticos. Uma lei de patentes que foi revista recentemente poderá forçar as companhias estrangeiras a transferir tecnologias importantes para os burocratas chineses. E regras antimonopólio vêm sendo usadas para limitar o acesso dos estrangeiros a setores como os de máquinas para construção e energia. "Eles desistiram de proporcionar condições iguais para todos, para beneficiar suas próprias companhias", diz Wuttke. As multinacionais "estão vendo a oportunidade dourada representada pela China se transformar em uma miragem", diz o diretor de uma grande empresa de tecnologia chinesa.
Ontem, o escritório do Representante Comercial dos EUA (USTR Office) disse em um relatório que as práticas de regulamentação excessiva e de imposição de padrões estão prejudicando as companhias americanas.
Em janeiro, a Câmara do Comércio dos EUA, a Business Software Alliance e mais de uma dezena de outros grupos que representam centenas de multinacionais, como Microsoft, Boeing, Motorola, Caterpillar e United Technologies, mandaram uma carta à Casa Branca alertando para "esforços sistemáticos da China para desenvolver políticas que desenvolvem suas empresas em detrimento das empresas americanas". Os signatários pediram ao governo americano "uma atenção urgente à política de desenvolvimento da China, que representa um perigo imediato para as companhias dos EUA".
Mas o que seria esse novo protecionismo? Os chineses olham para o cenário de sua economia hoje e percebem que muita coisa pode ser melhorada. Depois de 30 anos atuando como "oficina" do mundo, produzindo principalmente produtos de baixo valor para marcas estrangeiras e mercados distantes, eles agora querem subir na cadeia de valor. Até agora eles foram capazes de capturar apenas uma fração do valor de um tênis da Nike ou o iPhone da Apple. E eles sabem que possuem um histórico fraco de criação de marcas globais.
Além da fabricante de equipamentos de telecomunicações Huawei, a gigante dos notebooks Lenovo, a comerciante de ferramentas Haier e talvez a fabricante de produtos eletrônicos de consumo TCL e as fabricantes de automóveis Geely e Chery, os chineses possuem poucas campeãs. Mesmo em casa, a General Motors (GM) e a Volkswagen (VW) disputam a liderança, enquanto a Nokia vende mais telefones celulares na China do que qualquer outra companhia, com uma participação de mercado de 32,9%. "As pessoas sentem que as marcas estrangeiras abocanharam uma participação de mercado muito grande", diz Wang Yong, diretor do Centro de Economia e Política Internacional da Universidade de Pequim.
A China tem hoje um superávit comercial de US$ 227 bilhões com os EUA, mas sua capacidade industrial vem lhe provocando problemas imensos com a poluição e o desperdício de energia. É compreensível que os chineses queiram algo melhor. "Eles querem ter companhias internacionais sofisticadas e querem dar a elas um empurrão", diz Kenneth Lieberthal, do Brookings Institution.
Além disso tudo, a China saiu relativamente incólume da crise financeira mundial. Como resultado, analistas políticos afirmam que os chineses olham para o resto do mundo e sentem-se bem menos intimidados e admirados do que antes. Há também uma sensação de que a liderança prévia do presidente Jiang Zemin e do primeiro-ministro Zhu Rongji foi muito condescendente em seu desejo de entrar para a OMC - com medidas como redução das tarifas sobre os produtos agrícolas e o fim das exigências de nacionalização para as montadoras estrangeiras. Agora, a China sente que precisa impor seus interesses econômicos.
Finalmente, a China observa como outros países - especialmente os EUA - usam padrões, regras e políticas de estímulo à compra de produtos locais, para construir seus próprios setores. Pequim sente-se mais que no direito de fazer o mesmo. Se as companhias estrangeiras reclamam publicamente - o que não fazem com frequência, já que o governo chinês tem se mostrado capaz de usar inspeções, atrasos nas aprovações e os tribunais para tornar miserável a vida daquelas que reclamam -, a China agora geralmente diz: "Mostrem onde violamos as regras da OMC".
Alguns analistas de cabeça fria classificam as atuais reclamações de exageradas. Charles Freeman, um especialista em China do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, de Washington, afirma que Pequim não pode impedir a entrada dos investidores estrangeiros porque precisa de sua propriedade intelectual, pois a tecnologia chinesa está atrás da ocidental, da japonesa e da coreana em muitos setores importantes.
Mas os atritos continuam aumentando. O ponto que poderá criar mais problemas é a briga com a moeda chinesa, o yuan. Em 16 de março, um grupo de senadores americanos anunciou um projeto de lei que pretende impor restrições duras contra a China pela manipulação que ela vem exercendo sobre sua moeda para incentivar as exportações. Lieberthal, do Brookings, diz que os pontos econômicos dessa argumentação são fracos: uma valorização de 20% do yuan baratearia apenas os custos de importação da China, no caso do petróleo e do minério de ferro, que ela usa para fabricar produtos que são exportados, de modo que os custos finais dos produtos direcionados para os EUA subiriam apenas um pouco.
Os esforços para o desenvolvimento de uma tecnologia local é o que realmente está preocupando as empresas americanas. Pequim vem elaborando "políticas bem diretas de favoritismo à industria estatal chinesa, que estão prejudicando as companhias estrangeiras", afirma James McGregor, autor de um livro sobre investimentos na China continental e ex-presidente da Câmara do Comércio Americana na China. "Estamos vendo uma grande mudança."
Novas regras que dão preferência aos fornecedores chineses para projetos do governo estão tornando difícil para a GE e outras fabricantes estrangeiras de turbinas eólicas conseguirem contratos na China, um mercado avaliado em cerca de US$ 14 bilhões por ano. A Hewlett-Packard (HP) diz que a agência de proteção ao consumidor da China vem criticando a maneira como a companhia conduz suas garantias e reparos em certos notebooks. É a primeira vez que a HP tem esse tipo de problema.
Em 16 de março, funcionários do governo da Província de Zhejiang confiscaram roupas feitas na Europa pela Versace, Hugo Boss e outras marcas de luxo. Uma agência do governo disse que muitas peças não passaram em testes de qualidade ou segurança, alegação que foi enfaticamente rejeitada pelas companhias. E, no ano passado, companhias de correio expresso internacionais foram impedias de fazer entregas domésticas de cartas e documentos. A regra "é injusta e é ruim para a China manter as companhias internacionais fora", disse a analistas D. Scott Davis, presidente do conselho de administração da UPS.
A entrada da China na OMC deveria ter facilitado as coisas para os investidores estrangeiros, que já foram cortejados com isenções fiscais e terrenos gratuitos. Depois que o presidente Hu Jintao e o primeiro-ministro Wen Jiabao assumiram, em 2002, as coisas começaram a esfriar. Isso está deixando as multinacionais bem menos otimistas com a China. Embora os estrangeiros tenham conseguido lucros substanciais na China continental, no ano passado a confiança em relação aos ganhos futuros foi abalada, segundo apontam pesquisas separadas realizadas pelas câmaras do comércio dos EUA e da Europa. Os dois grupos informaram que a maior parte de seus membros ganha dinheiro na China, mas as fileiras das empresas lucrativas estão diminuindo. Apenas um terço das companhias europeias afirma agora que estar otimista com as perspectivas de lucros, contra metade no ano passado. Uma pesquisa separada feita pela Câmara Americana do Comércio em Xangai mostra que 39% das empresas disseram que as receitas caíram em 2009, o maio número desde 1999.
Medidas do tipo olho por olho contra as fabricantes chinesas de pneus e tubos de aço e o frango americano poderão desembocar em uma guerra comercial declarada. Washington avalia se vai responder ao favoritismo chinês com medidas punitivas contra Pequim na OMC e na Comissão Internacional do Comércio dos EUA, segundo um funcionário graduado do Departamento do Comércio dos EUA. "O que me preocupa é que as relações sino-americanas estão se tornando mais antagonistas", afirma Kai-Fu Lee, um ex-executivo graduado da Microsoft e do Google na China. "Isso não é saudável."
Grande parte do mal-estar tem origem na política de inovações local. Introduzida primeiro como uma meta nacional mal definida, vários anos atrás, a iniciativa ganhou velocidade no quarto trimestre do ano passado, quando Pequim começou a oferecer isenções fiscais e subsídios para as companhias chinesas, dando a elas preferência nos contratos com o Estado. Os governos provinciais e municipais de toda a China vêm emitindo listas dos produtos que podem ser comprados por suas agências - de celulares a ervas medicinais tradicionais. Raramente uma dessas listas inclui produtos feitos por companhias estrangeiras, mesmo que fabricados na China. Xangai, por exemplo, divulgou uma lista de mais de 500 produtos aprovados - PCs da Lenovo, painéis solares da Chaori Solar e mais. Apenas dois itens são de empresas com ligações estrangeiras. Tecnicamente, essas políticas não violam as regras da OMC, uma vez que a China ainda não assinou um acordo que cubra as aquisições de bens e serviços pelo governo. Pequim diz que pretende assinar esse acordo neste ano, o que não significa que isso irá acontecer, já que solicitou um período de ativação de 15 anos.
Uma questão importante é se a China vai definir as aquisições de bens e serviços do governo a ponto de elas incluírem escolas, hospitais e empreendimentos estatais. Uma definição ampla poderá colocar bilhões de dólares em vendas de produtos de tecnologia fora do alcance das companhias não-chinesas. "Basicamente, essas regras vão manter afastadas não só as companhias americanas que estão aqui, mas também as vendas em bloco das empresas americanas que operam na China", diz John Frisbie, presidente do US-China Business Council, um grupo lobista de Washington que representa mais de 200 multinacionais como o Citigroup, IBM e Microsoft. Pequim, diz ele, "foi longe demais".
Uma lei de patentes que entrou em vigor em outubro inclui uma regra que forçará as empresas a requererem patentes ou marca registrada na China antes de fazerem isso nos mercados internacionais, se elas quiserem se qualificar para as aquisições de bens e serviços pelo governo. As companhias afirmam que isso torna impossível vender qualquer produto desenvolvido fora da China e daria aos burocratas chineses acesso a segredos comerciais. A lei poderá forçar empresas que usam patentes a "competir de maneira injusta" - conforme definido por uma medida vaga de 2008 -, liberando as patentes para uso pelas concorrentes. Raramente as companhias estrangeiras recuam com estardalhaço por temerem irritar os chineses. Um executivo de uma companhia de entrega expressa internacional diz que as empresas globalizadas do seu setor poderão ganhar uma ação na OMC envolvendo as regras do governo chinês que as impedem de realizar o serviço de entrega de cartas no país, mas ele diz que jamais entraria sozinho com uma ação; é quase certo que, se fizesse isso, sua companhia sofreria constrangimentos. Muitos estrangeiros evitam tomar ações legais porque sentem que o Judiciário favorece as empresas domésticas. "Reclamamos, mas não processamos", diz Mark Cohen, um advogado da Jones Day.
Essa atitude foi reforçada em abril, quando a fabricante francesa de produtos eletrônicos Schneider Electric chegou a um acordo numa disputa por patente que já durava três anos com a Chint Group, uma fabricante de transformadores e interruptores, por US$ 23 milhões. Advogados ocidentais familiarizados com o caso afirmam que na verdade foi a Chint que roubou tecnologia da Schneider, e não o contrário. Thomas Pattloch, diretor de Protocolo da Internet da Delegação Europeia em Pequim, diz que o caso ilustra as chamadas "junk patents" usadas pelos chineses contra companhias cujas patentes eles infringiram. "A corte fez tudo o que podia para ignorar as provas apresentadas pela Schneider", afirma Pattloch.
O gosto de Pequim pelas regras criou outra grande barreira. Todos os anos a China emite 10 mil novos padrões para setores que vão dos celulares à indústria automobilística. Isso é mais do que o registrado em todo o resto do mundo, afirma Klaus Ziegler, o funcionário da delegação da Comissão Europeia na China encarregado de padronização. As regras, criadas ostensivamente para proteger a saúde e a segurança dos consumidores e garantir que os produtos funcionem na China, são sempre elaboradas de uma maneira que beneficiam as companhias chinesas, afirmam investidores estrangeiros.
A Continental da Alemanha precisa lutar com regras que exigem que todos os pneus vendidos no país tenham suas letras de identificação e especificação impressas em caracteres chineses. Embora haja um padrão mundial para essas especificações, os chineses insistem em suas próprias regras - de modo que a Continental e outras fabricantes de pneus precisam produzir uma grande quantidade de moldes especiais que custam quase US$ 70 mil cada. Isso não é um problema muito grande para pneus que são vendidos em grandes quantidades, mas pode acabar com os lucros quando se trata de produtos especiais, como pneus para veículos industriais.
Os fabricantes de fogões a gás enfrentam problemas parecidos. Enterrada em 50 páginas de regras para os utensílios que funcionam a gás, está uma cláusula que diz que os queimadores precisam suportar temperaturas acima de 700º C. Isso é mais que o estabelecido em outras partes do mundo e significa que os queimadores não podem ser feitos de alumínio - o material mais comumente usado pelos fabricantes europeus. O resultado: vários fabricantes italianos foram fechados, afirma Ziegler, o oficial de padrões da Comunidade Europeia. "A China eliminou os fabricantes italianos", diz ele.
A pirataria de softwares na China é "incontrolável" e "priva as companhias de softwares dos EUA de bilhões de dólares todos os anos", disse Robert Holleyman, presidente da Business Software Alliance. Num outro lado do problema dos softwares, um executivo familiarizado com a fabricante de softwares alemã SAP diz que Pequim oferece isenções e outros incentivos para companhias que compram produtos da companhia concorrente local Kingdee.
Na área de serviços, continua sendo difícil dobrar a China. O setor de seguros, por exemplo, deveria ter sido aberto depois que a China entrou para a OMC. Mesmo assim a Chubb, a Liberty Mutual e a Zurich podem solicitar a abertura de só uma nova agência por vez - e demoram mais de 18 meses para conseguir a aprovação. "Existe essa mentalidade de que eles querem ajudar as companhias locais", diz um executivo de uma seguradora estrangeira. "E a maneira mais fácil de fazer isso é protegê-las da concorrência externa."
Alguns ocidentais creem que todos esses problemas têm origem nas negociações da China para entrar na OMC. Na corrida para conseguir o acesso a um mercado enorme, muitas coisas não foram feitas de maneira adequada as pessoas simplesmente esperaram que Pequim fosse interpretar o acordo de uma maneira que os estrangeiros considerariam justa. "Estavam todos concentrados na enormidade do que estava sendo conseguido, colocando a China na OMC", diz um executivo de um banco ocidental que opera em Xangai. "Eles acharam que poderiam dar um jeito nos detalhes depois."
(Copyright© 2010 The McGraw-Hill Companies Inc.)
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