A nova abordagem do Google na China: Um furo no grande firewall?
Daniel Oppermann
Mundorama, 10 fevereiro 2010
Na discussão sobre a liberdade de expressão na Internet, a China é sempre mencionada como o exemplo mais grave em relação às próprias regulamentações de acesso às informações online. A reputação do maior país asiático de manter um regime rígido de censura online não existe sem razão. Nos últimos anos, a China construiu um dos sistemas mais sofisticados do mundo para controlar o que a população do país pode acessar na Internet. Uma das medidas mais usadas é o sistema de filtro conhecido como “The Great Firewall of China”. Por meio desses filtros instalados em servidores escolhidos, o governo chinês consegue achar, bloquear e até deletar conteúdo em fóruns e blogs, por exemplo, que incluem expressões como Tibet, Falun Gong, Tiananmen e outras. Em alguns casos, cidadãos que criticaram o governo chinês pela internet estão presos. O exemplo mais famoso é o do ativista pelos direitos humanos Liu Xiaobo, que foi condenado a onze anos de prisão em dezembro 2009 por causa de “subversão“. Liu foi preso em dezembro 2008 depois de publicar um chamado na Internet por reformas políticas na China.
Além dos exemplos mencionados, também sites de busca são alvos das restrições. Companhias internacionais que atuam no mercado chinês precisam se adaptar ao sistema de filtro na China. Especialmente para companhias de países democráticos ocidentais isso pode significar um desafio como mostra o exemplo do global player Google Inc. da Califórnia, EUA. Um dos princípios centrais do Google, também chamado de “missão” da companhia: “Google’s mission is to organize the world’s information and make it universally accessible and useful”. A sinceridade da companhia foi questionada pela primeira vez por um grande público em 2006, quando ela decidiu entrar no maior mercado nacional do futuro: o da China.
A China atualmente tem 300 milhões de usuários de Internet e já é o maior mercado de Internet no mundo. Com uma população de 1,3 bilhões de pessoas, tem também um potencial de crescimento que não existe em nenhum outro país do mundo. A entrada no mercado chinês é uma obrigação para todas as companhias de tecnologia de informação (além de outros setores também) que querem se expandir no continente asiático. Além do Google, a Microsoft, o Yahoo, a Cisco e outros global players do setor de tecnologia de informação (TI) investiram na China nos últimos anos. E, como o Google, muitos deles foram confrontados com a alegação de apoiar o regime de censura do governo chinês. E eles de fato o fizeram, ativamente ou passivamente. Passivamente podem ser consideradas as companhias oferecendo produtos para filtrar a Internet ou bloquear certas páginas. Um produto capaz de bloquear a página de uma rede social nos computadores de uma escola em Recífe também pode ser usado para bloquear a página de Amnesty International na China. Diferente no caso do Google foi o fato que a companhia aceitou as regulamentações do governo para filtrar todas as buscas feito pelos usuários da China, procurando informações sobre direitos humanos e outros aspetos mencionados antes. Desta forma, a companhia participou ativamente no regime da censura. Esta decisão foi explicada pela companhia como necessária para atuar no mercado chinês. Mesmo assim resultou em uma onda de protestos especialmente por atores da sociedade civil. A fundação da Global Network Initiative (GNI), uma associação de companhias e organizações (quase somente dos EUA) representa uma tentativa de restabelecer a reputação das companhias criticadas. Mas desde sua fundação em 2008, a GNI chamou pouca atenção e os resultados produzidos nos últimos dois anos também foram pobres.
Diferente foi a declaração feita pelo Google em janeiro de 2010 (“A new approach to China“), na qual a companhia explicou que vai mudar sua política e reabrir seu sistema de busca para expressões consideradas indesejáveis pelo governo chinês. Segundo a declaração, o Google tomou essa decisão depois que sofreu fortes ataques virtuais (segundo o Google, vindos do governo chinês), que resultaram em roubo de propriedade intelectual da companhia. Além disso, foram detectados vários casos de invasões de contas de emails pertencentes a ativistas de direitos humanos na China. Referindo-se a esses incidentes e às tentativas do governo chinês para limitar as atividades do Google durante o ano 2009, a companhia lançou sua declaração e explicou que vai entrar em negociações com Pequim, sobre como (ou se) seria possível oferecer um sistema de busca não filtrado.
Interessante é que, segundo o analista de segurança de TI Bruce Schneier, nos ataques foi usado um mecanismo do próprio software do Google, que a companhia instalou por causa das regulamentações articuladas pelo governo dos EUA, para controlar as atividades online dos cidadãos americanos.
Logo depois que a decisão do Google foi publicada, começaram as especulações sobre os motivos da companhia para arriscar seu acesso ao maior mercado de Internet no mundo. Um fato importante nesse contexto é que o Google não tem o mesmo papel na China como na maioria dos outros mercados do mundo. De fato, a companhia tem um papel relativamente pequeno. A sua quota de mercado na China é 35% (no mercado global são quase 70%), enquanto a maioria do mercado pertence à companhia chinesa Baidu (58%). Por que então a companhia americana vai arriscar sua quota ignorando as regulamentações do governo?
A teoria de que o Google busca um jeito de sair do mercado chinês por causa da concorrência forte é pouco provável. Mesmo que sua quota fique em 35%, isso seria um mercado gigante considerando o crescimento econômico do país e do número dos clientes que vão entrar no mercado nos próximos anos. Mesmo assim a companhia deve ter percebido que não vai ganhar contra a Baidu e terá um papel menor na China. Esta foi também uma das razões porque o presidente do Google China, Kai-Fu Lee, saiu da companhia em setembro de 2009, depois de apenas quatro anos.
Um cenário mais provável então é que os responsáveis pelo Google nos EUA decidam mudar a função no mercado chinês para a estratégia global da companhia. Com poucas chances de aumentar sua fatia no mercado chinês, a crítica à prática de censura pelo governo chinês serve para restabelecer a reputação da companhia, que sofreu bastante durante os últimos anos depois que aceitou as restrições de Pequim. Com a crítica ao governo chinês, a companhia reforçou sua reputação de garantir acesso livre a todas as informações existentes na Internet e, ainda, sua missão mencionada em cima, e seu famoso slogan: “Don’t be evil”.
As primeiras reações internacionais confirmam essa teoria. A sociedade civil global apoiou a decisão do Google. Ativistas e organizações de defesa dos direitos humanos e da liberdade de expressão elogiaram a declaração da companhia. Além de um curto comentário de apoio do presidente americano, Barack Obama, também a secretária de Estado americana, Hillary Clinton, fez uma palestra sobre a liberdade da Internet, poucos dias depois a declaração do Google. Nessa palestra, Clinton criticou não somente a China, mas também outros países, entre eles Vietnã, Egito e Arábia Saudita, por suas políticas em relação à Internet e à liberdade de expressão. Comentaristas veem essa palestra como uma nova abordagem da política dos EUA, enfatizando a liberdade na Internet como parte da liberdade de expressão.
O que significa esse apoio de alto nível para as relações entre o Google e Pequim? Nos seus primeiros comentários, o governo chinês respondeu como sempre o faz quando é confrontado com acusações por ser responsável por ataques virtuais: ele negou qualquer forma de responsabilidade. O próprio Google agora pode se apresentar como defensor da liberdade de expressão e, assim, dos direitos humanos globais. Dessa forma, a companhia conseguiu dar um passo estrategicamente importante para manter sua posição global de líder no mercado de Internet. Ela também tem uma forte posição nas negociações com o governo chinês, que vão começar agora para esclarecer a situação da companhia americana no país.
Quem achou que o Google terá que sair da China pode estar facilmente enganado. A China precisa do capital intelectual e das inovações que o global player trouxe para o país. Com isto, e também devido às acusações de que Pequim seria responsável pelos ataques, pode até ser que o Google venha a ter uma posição mais forte nas negociações e consiga manter sua posição na China e ao mesmo tempo ser reconhecido por aqueles atores (especialmente no mundo ocidental) que valorizam a liberdade de expressão. No final, Pequim pode controlar e censurar as informações na China, mas o Google está controlando-as no resto do mundo.
Daniel Oppermann é Doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB (dan.oppermann@gmail.com).
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