De Mao a Deng, e mais
Por Marco Damiani, de São Paulo
Valor Econômico, 12/02/2010
Internacional: À frente de uma equipe de 18 pesquisadores e analistas que produzem informações sobre a economia e a política da China para 85 empresas globais, Jonathan Fenby diz que o governo do país receia excesso de liquidez, risco de inflação e aparecimento do capital especulativo. Por isso, decidiu pisar no freio do mercado interno, sem abrir mão de avançar nas exportações.
Jonathan Fenby: "O povo está orgulhoso de seu país e do crescimento econômico. De zero a dez, a chance de ocorrer uma nova Praça Tiananmen (manifestações estudantis no centro de Pequim, em 1989) é um, porque zero não dá para arriscar"
A explosão de um satélite meteorológico chinês a cerca de 100 quilômetros da superfície da Terra, meses atrás, passou despercebida por muita gente, mas tem tudo para ser lembrada como um dos gestos mais inusitados - e eficazes, ao que tudo indica - que explicam a atual escalada de controvérsias entre o país mais populoso do planeta e a maior potência econômica. A pulverização do aparelho espacial por um míssil desenvolvido e operado pelo exército chinês foi a maneira encontrada pela cúpula dirigente da China para mandar um recado ao governo americano, alguma coisa como "sim, nós também podemos".
"Todo o sistema de comunicação militar dos americanos está centrado em satélites", assinala o jornalista, escritor e pesquisador inglês Jonathan Fenby, autor do best-seller "The Penguin History of Modern China - The Fall and Rise of a Great Power, 1850-2009" (ainda sem tradução para o português), muito elogiado pela crítica, incluídas as avaliações da revista "The Economist" e pelo jornal "Financial Times". Fenby não tem dúvida de que, "com o sucesso do disparo, os chineses mostraram aos Estados Unidos que deram um bom passo à frente em termos de tecnologia militar, um dos pontos fracos de seu exército, e que estão preparados para um enfrentamento a qualquer tempo". Registre-se: os Estados Unidos responderam imediatamente, explodindo um dos seus próprios satélites no ano passado.
Fenby não aposta uma ficha na possibilidade de uma guerra entre as duas potências. Nas quase três horas em que conversou com o Valor, durante passagem por São Paulo, a lembrança do tiro ao alvo foi apenas uma entre muitas menções a fatos que acontecem na China e nem sempre podem ser observados e compreendidos a olho nu deste lado da muralha. "Os Bric como um todo não são fáceis de entender, mas a China é ainda mais opaca." É pela observação de aspectos cotidianos do país, acompanhamento de movimentos estratégicos do governo e uma rigorosa apuração dos números macroeconômicos que Fenby, por meio da sua Trusted Sources, presta serviços de pesquisas e análises sobre a China para grandes empresas globais. No Brasil, um dos seus clientes é a Vale, maior exportadora de minério de ferro para o país de 1,4 bilhão de habitantes, US$ 4,9 trilhões de PIB e estimados US$ 2,39 trilhões em reservas monetárias. "A simples leitura dos relatórios oficiais não é capaz de revelar para onde a China vai, e com ela o mundo."
Percorrendo o interior da China, Fenby constatou que "fazer filhos" é opção que casais nem sempre escondem, apesar da lei que impõe restrições à natalidade
Repórter que cobriu a guerra do Vietnã, fez carreira nos jornais "Observer" e "Guardian" e na agência Reuters, Fenby montou uma ampla rede de fontes, contatos e amizades em território chinês. De funcionários de governo a chefes de aldeias, passando por professores universitários e profissionais liberais, sua trama informativa começou a ser tecida em 1995, quando assumiu o cargo de editor-chefe do "South China Morning Post", de Hong Kong - jornal de língua inglesa, com 100 mil exemplares diários e extremamente lucrativo, em razão de atrair forte publicidade empresarial. "Nosso público era a elite local, os 5% da população que conseguiam ler em inglês." Quando a China assumiu a possessão da ilha, em 2000, Fenby passou a receber mensagens do dono da empresa para suavizar a cobertura de assuntos internos do país. Nesse momento, entregou o cargo e decidiu avançar na garimpagem de informações sociais e econômicas que, imaginou, teriam valia para empresários interessados em fazer negócios com a China. Hoje, lidera uma equipe de 18 pesquisadores e analistas divididos entre a Inglaterra e os Estados Unidos. Sua empresa fornece relatórios com diferentes periodicidades para 85 clientes empresariais globais de 12 países.
Fenby vai à China de três a quatro vezes por ano, para verificar in loco se os números levantados à distância pelos pesquisadores dialogam com a realidade do país. Na contramão de diferentes analistas, ele não acredita que a China vá crescer outros 10% em 2010, a exemplo do que fez no ano passado. Suas previsões estabelecem que o PIB chinês será de 6% a 7% maior do que o verificado em 2009. "Até mesmo a China tem um limite para crescer de maneira sustentável."
Para Fenby, as atitudes dos Estados Unidos em relação a problemas internos chineses são compreensíveis, mas também refletem uma certa ignorância a respeito do que seria mais adequado fazer (na foto, os presidentes Hu Jintao e Barack Obama, em Pequim)
Para justificar a projeção, Fenby lança mão do cruzamento de dados. "No ano passado, houve um investimento estatal de 40% do PIB em obras de infraestrutura, mas isso não irá se repetir em 2010." Fenby trabalha com a informação de que a meta de investimentos no setor estabelece um recuo de 20% sobre o realizado no ano passado. Outro dado, segundo ele ainda mais importante, demonstra a decisão oficial de refrear as taxas de crescimento. "As concessões oficiais de crédito às empresas e ao consumidor somaram 1,3 trilhão de dólares em 2009, o dobro do que fora emprestado em 2008, mas já existe a determinação de tornar esse volume 25% menor este ano." Fenby acrescenta que obteve essa indicação no início deste mês, por meio da detalhada leitura da imprensa local. "Muita informação vem em linguagem cifrada, em notas de rodapés nos jornais ou por meio de poucas palavras de porta-vozes. Os líderes sabem que até seria possível, mas simplesmente não querem crescer a uma taxa de 14% este ano, porque temem problemas como liquidez excessiva no sistema financeiro e bolhas de inflação."
É certo, de acordo com Fenby, que a política de incentivo às exportações, em grande parte favorecidas pela administração do câmbio, vai prosseguir. Não há indícios de que Pequim pretenda valorizar o yuan, como pretendem os Estados Unidos. Washington argumenta que a gestão cambial, como é feita hoje, garante aos produtos chineses um grau de competitividade imbatível, que termina por determinar a perda de empregos nos Estados Unidos. "Isso [a valorização da moeda], entre outras consequências, poderia atrair o investimento especulativo para o país, e os chineses também não querem correr esse risco", explica Fenby.
Fenby enxerga na continuada aceleração das exportações chinesas um fator que pode mudar a atual configuração do comércio mundial, com aumento do protecionismo. Já agora, até mesmo países como o Brasil, que defendem a queda de barreiras de acesso a mercados, impõem restrições à entrada de produtos chineses. O movimento protecionista ainda é limitado, porém, porque no outro prato da balança há o fato de as importações chinesas de commodities, especialmente, continuarem a crescer. A demanda de aço, por exemplo, prossegue em alta, e está prevista a abertura de novas siderúrgicas no país, com o que também será possível responder às pressões por criação de empregos dos governos provinciais. Mas a mesma China que comprou cerca de 11 milhões de toneladas de aço do mundo em janeiro de 2004 - com perto de 2,5 milhões de toneladas exportados pelo Brasil -, consumiu mais de 60 milhões em janeiro deste ano, dos quais quase 14 milhões de origem brasileira.
A tese de que a China tornou-se, ou está se transformando num país de economia de mercado não tem respaldo na realidade, diz Fenby. "As tarifas de água, luz e energia são fixadas pelo governo central, assim como a taxa de câmbio. Os investimentos são dirigidos pelo Estado e toda a economia está centralizada em quatro grandes bancos estatais, o da China (central), o da Agricultura, o da Construção Civil e o IBCB, de investimentos."
Esse sistema satisfaz a grande maioria da população do país, acredita Fenby, possivelmente o jornalista estrangeiro com maior número de fontes em território chinês. "O povo está orgulhoso de seu país e do crescimento econômico. De zero a dez, a chance de ocorrer uma nova Praça Tiananmen (manifestações estudantis no centro de Pequim que repercutiram em todo o mundo, feitas em 1989) é um, porque zero não dá para arriscar."
Fenby conta que nem tudo transcorre na China com estrita observância do que o governo determina. A lei que estabelece restrições à natalidade, por exemplo, impondo o limite de um filho por casal, nem sempre é levada ao pé da letra, ao que parece. "No interior da província de Zhe Jiang, perguntei a um líder de uma aldeia pobre porque havia tantas crianças pequenas pelas ruas, e ele me disse que se houvesse luz elétrica e televisão as pessoas teriam um alternativa ao sexo, mas como o progresso não havia chegado, faziam filhos." E há quem se sinta à vontade para afrontar de público a sisudez do regime. Numa casa noturna em Xangai, o repórter encontrou um humorista que satirizava a presença dos líderes chineses em ocorrências como terremotos. "´Desculpe, estou atrasado´, dizia ele, apertando a mão das pessoas em sofrimento como se via na tevê", recorda Fenby.
Entre os líderes do regime, Fenby aposta na ascensão, em 2012, de Li Kejiang para o cargo de primeiro-ministro, e de Xi Jinping para a chefia do Partido Comunista. "Isso já está certo." Ambos fazem parte da atual cúpula do Estado chefiado por Hu Jintao, que acumula as funções de secretário-geral do Partido Comunista, presidente do país e chefe das forças armadas, e Wen Jiabao, primeiro-ministro e chefe de governo. "Não há grandes divergências políticas ali", acredita o jornalista, que fez esse mesmo relato, pessoalmente, a empresários reunidos este ano no Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça.
Questões como a censura ao Google, a manutenção do Tibete como região autônoma pertencente à China e a perseguição a muçulmanos não sensibilizam a estrutura de governo. "Quando batem nessas teclas, acreditando que poderão fazer a China mudar suas posições, Barack Obama e Hillary Clinton apenas mostram que não sabem como lidar com o país, seus dirigentes e seu povo", diz Fenby. "É claro que os Estados Unidos têm de manifestar suas posições liberais, mas esses temas não sensibilizam a população, que em sua maioria considera os monges do Tibete no máximo como velhinhos extemporâneos, vê os muçulmanos na categoria de invasores e mal sabe o que se pode fazer por meio do Google."
No livro que o tornou um escritor de sucesso, Fenby defende a tese de que a China foi o país que mais sofreu, em todo o planeta, nos últimos 200 anos. Mas observa que também é o de maior capacidade de superação e crescimento dos últimos 30 anos. Um salto que, para ele, deve ser creditado a dois dirigentes políticos: Mao Tsé-tung e Deng Xiaoping. "Mao mudou a China, mas Deng mudou o mundo", sentencia Fenby, agora empenhado na construção de uma biografia de Charles de Gaulle.
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