Carta de Shanghai, 1:
O que eu sei sobre a China?; e o que pretendo aprender…
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org; pralmeida@mac.com)
(escrito em vôo: Brasília-São Paulo, 4.11.2009)
O que eu sei sobre a China? Muito pouco, sem dúvida, mas tenho a intenção de aprender bastante, no curso dos próximos meses (e talvez anos).
Decidi aceitar uma missão temporária na China, mais precisamente em Shanghai, onde vou assumir a direção do pavilhão do Brasil na Exposição Universal que ali se realizará de maio a outubro de 2010. Trata-se de um novo e importante (e interessante) desafio em minha carreira profissional, tanto pelo trabalho em si, quanto pelo país, obviamente, o de maior projeção internacional na atualidade, pelas suas promessas de crescimento e de ascensão na escala mundial de poder e prestígio.
Por que aceitei a missão? Em primeiro lugar porque fui para tal autorizado pela minha caríssima, diletíssima e queridíssima esposa – desculpem o excesso de “íssimas”, mas cabem a ela – Carmen Lícia, que teria a última palavra em qualquer decisão nesse sentido: ou seja, se ela se opusesse à idéia, eu simplesmente não aceitaria o encargo, mesmo estando nele interessado e decidido a aceitar preventivamente. Parto do princípio de que a família passa na frente da carreira, ou das decisões profissionais, embora toda decisão, ou escolha, nesse âmbito sempre é difícil, tendo em conta as inúmeras variáveis em consideração. Uma vez recebido o convite, ou a oferta, procurei informar-me suficientemente sobre o país e sobre a natureza do trabalho, antes de apresentar tal oferta a Carmen Lícia. Para minha surpresa, e alívio, ela aceitou imediata e entusiasticamente, sem nenhuma objeção de princípio, o que me deixou muito contente, pois temia alguma hesitação ao projeto, pelo seu caráter provisório, ou pelas características do país. Eu lhe sou grato por isso, e creio que ela retirará, inclusive, bem maior proveito desta missão, do que eu, que terei de me desempenhar na representação burocrática e nos afazeres oficiais.
Bem, considerações pessoais à parte, vejamos o que me atraiu no convite e na perspectiva da missão. Porque se trata, em primeiro lugar, de um bom desafio intelectual, já que a China constitui, provavelmente, o país mais curioso, misterioso e fascinante da atualidade (ou talvez tenha o sido desde a mais remota antiguidade, pelo menos da perspectiva dos nossos olhos, ocidentais). Também porque se trata, como expressamente esclarecido, de uma designação temporária, sete ou oito meses no máximo, o suficiente para tentar conhecer a China – ou obter alguma compreensão um pouco mais ampla, e talvez uma idéia um pouco mais precisa – sobre o que ela representa para a economia mundial e sobre o seu futuro papel na política mundial. Ou seja, estarei de volta antes de ter tido tempo suficiente para aprender o mandarim.
Sobre a língua, de fato, se trata de um obstáculo relativo, mas menos do que se pensa e menos do que parece. Mas, aparentemente, não terei tempo para aprendê-la de maneira suficientemente satisfatória, tendo em vista minhas outras obrigações profissionais e emprego do tempo. Não que eu repugne aprender a língua oficial e veicular da China, mas é que também pretendo me concentrar em tantas outras coisas que, creio, não poderei alocar tempo suficiente para aprendê-la, tarefa que deleguei, em parte, a Carmen Lícia, esta inteligentíssima esposa que me acompanhará o tempo todo.
Mas, voltemos ao tema desta primeira “carta de Shanghai”: o que eu sei sobre a China e o que pretendo aprender durante minha curta estada na grande nação asiática? Em duas breves expressões: muito pouco, e tudo o que for possível aprender no curto espaço de seis ou sete meses (mas já estou aprendendo antes, desde agora, de forma sistemática). Paradoxalmente, já que pretendo aprender muito sobre a China, por que não dedicar-me mais intensamente ao estudo do mandarim, que seria instrumental para o meu objetivo principal? Bem, minha explicação seria puramente racional e tem a ver justamente com a insuficiência de tempo para fazer tudo o que seria humanamente possível de fazer em relação a um conhecimento mais aprofundado da China.
Minha área básica de trabalho é a economia mundial, o desenvolvimento econômico, as instituições políticas, os problemas da paz e da guerra em um mundo ainda em transição para uma ordem menos anárquica do que aquele que vivemos em grande parte do século 20 (e que ainda está conosco residualmente). Ora, a maior parte da literatura nesses campos está em inglês ou em outras línguas ocidentais, ainda que não se possa descurar a (presumível e esperada) produção própria da China, geralmente acadêmica, que é crescente e da maior qualidade (segundo leio em artigos especializados), à medida que o país já abandonou as misérias intelectuais do maoísmo delirante e se abre à globalização, inclusive científica. Possivelmente, também, todos os meus interlocutores chineses nas matérias e áreas por mim selecionadas falarão ou entenderão inglês, e com eles poderei interagir o suficiente para me informar e dialogar sobre o país e seu papel na economia e na política mundiais.
De toda forma, aprender mandarim seria importante se eu me dedicasse ao aprendizado de aspectos diversos da cultura chinesa, sua literatura, folclore, costumes e tradições, o que também procurarei fazer na medida do possível. Mas o cálculo é simples: o tempo empenhado no estudo da língua – seus fonemas e ideogramas – seria retirado de esforço equivalente no estudo e conhecimento de áreas de meu interesse primordial, o que poderei fazer em inglês, inclusive para interagir com o público at large. Dessa forma, estou decidido a concentrar-me na China da globalização, não na China da tradição, de suas aldeias e costumes ancestrais. Talvez seja um erro, do qual eu venha a me arrepender no mesmo momento, e pode parecer uma decisão mal avisada; na vida, contudo, sempre temos de fazer escolhas difíceis entre objetivos conflitantes. Por outro lado, não deixarei de aproveitar-me dos conhecimentos sobre o povo, seus hábitos e outras características que o domínio sobre a língua que Carmen Lícia pretende adquirir nos permitirá (o que, aliás, ela já vem fazendo preventivamente).
Pois bem, retomando o título desta minha primeira “carta de Shanghai” – não pretendo usar a forma brasileira Xangai – o que, de verdade, eu conheço sobre a China? Para ser claro, muito pouco, apenas o que consegui aprender, rápida e superficialmente, nos artigos de jornais e revistas – tipo Economist, Financial Times, New York Times, Foreign Policy e Foreign Affairs – ademais de boletins e estudos de organismos internacionais e think tanks americanos e europeus. Ou seja: um conhecimento basicamente ocidental e focado na economia e nas relações internacionais, o que é, obviamente, uma parte muito pequena das realidades chinesas. Também já li alguma coisa nos livros de história e de política internacional, no se refere à China, materiais que estou agora devorando com uma ênfase particular naqueles temas de meu interesse. Em recente viagem à Europa adquiri um bom guia – Lonely Planet, que recomendo – e diversos livros sobre a China. Graças a Carmen Lícia, acabo de ler a Historia Mongalorum – Storia dei Mongoli, ou Tartari (1247) – do franciscano Giovanni dei Pian di Carpine, o primeiro ocidental a ter visitado a China, entre Gengis Khan e Kublai Khan, numa missão (diplomática, mas também de espionagem militar) a serviço do papa Inocêncio IV.
Preparando-me para a minha missão (puramente diplomática, mas certamente, também, de espionagem intelectual), criei um blog, Shanghai Express, no qual estou “depositando” tudo o que eu encontro de interessante sobre a China naquelas áreas de meu interesse específico. Nada de muito planejado ou organizado: apenas uma plataforma eletrônica de apoio a minhas leituras e para a coleta e disponibilização de todo tipo de dado sobre os “meus tártaros”. Tenho grandes expectativas a essa missão transitória, além e acima do mero encargo burocrático de representação do Brasil durante a Shanghai Expo.
Gostaria de ter a oportunidade de viajar pelo país e adjacências, o que farei na medida do possível. Pretendo entrar em contato com acadêmicos, funcionários do governo e cidadãos comuns, capitalistas ou trabalhadores, para interagir em função de meus objetivos de conhecimento aprofundado e de compreensão do papel da China no contexto internacional. Ou seja, pretendo aprender muito e, conscientemente, tentar disseminar um pouco do que eu conseguir aprender para um público mais vasto, especialmente no Brasil, que continua a ser a base principal de meu trabalho intelectual.
De fato, nunca fui um “orientalista” e muito menos um “asiatista” ou sinólogo; ao contrário, sempre fui um “brasilianista”, obsessivamente preocupado com os problemas do desenvolvimento brasileiro. Pois bem, chegou a hora de me ocupar agora de um país distante, mas muito presente, quase desconhecido para a maior parte dos ocidentais, mas tremendamente importante para o mundo e para o Brasil, nessa ordem. Espero estar à altura do desafio, não exatamente o de representar o Brasil na Expo – pois isso é o mínimo que se poderia esperar de um profissional – mas do gigantesco desafio que representa aprender o máximo possível sobre a China e a sua vasta região, de fato “apreender” exatamente qual é o seu papel no mundo de hoje, na economia do futuro, e depois ser capaz de transmitir tudo (ou pelo menos um pouco) do que consegui aprender a meus eventuais leitores e colegas de academia e de profissão.
A China é, em si e por si, mais do que um continente inteiro, um vasto mundo, o país do momento e também a nação do futuro, o imediato e o previsível. Desejo aprender, compreender, traduzir e transmitir algo de meus novos e projetados conhecimentos; creio, aliás, que Lao Tsé, Confúcio e outros distinguidos pensadores chineses se encaixariam bem na minha coleção de “clássicos revisitados”, dos quais já “extraí” um Manifesto Comunista na era da globalização, um Moderno Príncipe (que Maquiavel talvez apreciasse) e um De la Démocratie au Brésil, que precisou mobilizar novamente os dotes de viajante de Tocqueville. Não tenho certeza de que, no plano puramente político, a China tenha mudado muito desde os tempos de frei Giovanni, no século 13. Mas ela certamente se transformou enormemente nos últimos trinta anos, e está transformando a região e o mundo. Espero testemunhar um pouco sobre esse seu papel revolucionário no contexto das relações internacionais e da geoeconomia mundial. Veremos o que resulta desta aventura intelectual e deste empreendimento de sinologia aplicada.
Brasília-São Paulo, 4 novembro 2009.
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