Líderes chineses são mais inteligentes que os ocidentais
ENTREVISTA DA 2ª - SIDNEY RITTENBERG
RAUL JUSTE LORES - DE PEQUIM
Folha de São Paulo, segunda-feira, 26 de outubro de 2009
Único americano aceito por Mao Tsé-tung no Partido Comunista revela que Washington, em duas ocasiões, ignorou solicitação do chinês de reunião com representantes dos EUA
ÚNICO americano membro do Partido Comunista chinês em seus primórdios, Sidney Rittenberg, 89, foi intérprete dos líderes comunistas Mao Tsé-tung e Zhou Enlai e chefiou a rádio China Internacional.
Nos anos 40, Mao pediu que ele enviasse mensagens ao governo Roosevelt, em que o líder chinês dizia que queria "manter boas relações com os EUA".
Íntimo do poder na maior parte do tempo em que morou na China (1944-1980), ele ficou dez anos preso durante a Revolução Cultural por criticar a burocracia do regime de Pequim. Casado com uma chinesa, o americano mantém até hoje o hábito de passar quatro meses por ano na China, onde tem uma empresa de consultoria.
Em seu apartamento em Pequim, Sidney Rittenberg conta como Mao via os EUA, as comunas e como a liderança comunista se encastelou na Cidade Proibida. Ele explica o que mudou na relação com os EUA e decreta: os atuais mandatários comunistas "são muito mais inteligentes e preparados" que os líderes ocidentais.
REVOLUÇÃO NOS EUA
Em 1946, tive vários encontros com Mao, ele queria saber tudo sobre os EUA. Na época, ele ainda era um excelente ouvinte. Tinha lido Rousseau, Locke, Franklin antes de Marx e Lenin. Sabia quase nada dos EUA contemporâneos. Achava que, ao fim da Segunda Guerra, com a crise e o desemprego, haveria uma revolução proletária nos EUA. Eu dizia que os sindicatos estavam enfraquecidos, mas ele discordava.
MAO IGNORADO
Duas vezes levei mensagens de Mao para o então embaixador americano. Mao dizia que venceria a guerra e que, quando fosse líder da China, queria ter boas relações com os EUA. Dizia que precisaria de dinheiro para reconstruir o país e que não queria ficar tão dependente da União Soviética. Até pediu para ter um encontro secreto com Roosevelt. Dizia não querer presentes, mas empréstimos. Nas duas vezes, os EUA não responderam e perderam uma chance de ouro.
Zhou Enlai tentou falar com o embaixador americano em Nanquim, sem sucesso. Se não tivessem fechado a porta para Mao, talvez as guerras da Coreia e do Vietnã não tivessem acontecido, e Mao teria outro sistema no qual se inspirar. Mas até hoje há americanos com dificuldades de dialogar com quem pensa diferente.
FELIZES COM MAO
Diziam que os migrantes rurais demitidos no ano passado se rebelariam? A maioria se reempregou e está feliz da vida. O mesmo aconteceu nos anos 60. Não houve nenhuma rebelião popular para derrubar Mao porque os chineses estavam felizes. Até os anos 40, a China sofria com pestes, epidemias, prostituição, ópio, invasões externas, camponeses miseráveis. Depois, a China universalizou a saúde e a educação, as mulheres passaram a ter os mesmos direitos.
A China derrotou os EUA na guerra da Coreia, "nem a maior força imperialista conseguiu dobrar a China", dizia Mao. Os chineses estavam orgulhosos pela primeira vez em um século e colocavam toda sua energia nesse novo projeto de país.
TENSÕES ÉTNICAS
No início, os comunistas procuraram apoio de tibetanos e muçulmanos contra o inimigo mais forte, as tropas de Chiang Kai Shek. Em 1942, Mao disse que Taiwan, Tibete e Xinjiang deveriam ser independentes. Já em 1948, outros líderes comunistas me diziam que seria impossível, pois esses países seriam dominados logo por potências imperialistas e seriam hostis à China.
Onde a religião é parte da identidade, as diferenças ficaram mais largas. Cada mosteiro tibetano tem um chinês han ateu como administrador. As tensões são antigas.
Mao recebeu bem o dalai-lama em Pequim. Recentemente, o dalai disse que em economia era 100% marxista, "por isso não me entendo bem com o atual Partido Comunista chinês". O dalai falava que queria acabar com a servidão no Tibete, e Mao lhe dizia para fazer reformas com calma. Aí veio a CIA, apoiou os rebeldes, ocorreu o golpe e o dalai se exilou.
MAIS INTELIGENTES
A maior diferença entre os dirigentes comunistas de hoje e os pioneiros é a enorme formação da atual geração. Os atuais líderes comunistas são muito mais preparados e mais inteligentes que qualquer dirigente ocidental. Ponto. Conseguiram acabar com a fome, reduziram o desemprego, melhoraram a educação e a saúde de um país de 1,4 bilhão de habitantes, cuja economia cresce sem parar.
É um país ainda com enormes problemas, mas os feitos são maiores. Hu e Wen são de uma geração de engenheiros muito capaz. Wen Jiabao [premiê] é o líder mais popular do país, ainda que não tanto entre seus pares, mas tem o apoio [do presidente] Hu Jintao. A prioridade é conciliar os conflitos entre trabalhadores e patrões, camponeses e urbanos, entre os han e as minorias étnicas.
CHINA NO MUNDO
Pela primeira vez em 3.000 anos de isolamento, a China está presente no mundo, faz parte das relações internacionais. Todos os grandes imperadores chineses foram usurpadores, chegaram ao trono assassinando ou derrubando os ocupantes ou herdeiros. Os sucessores apontados por Mao e Deng Xiaoping no início nunca chegaram a tomar posse. Nos últimos anos, pela primeira vez em sua história, a China tem transições pacíficas e previsíveis.
A memória da Revolução Cultural criou um medo profundo do caos entre os chineses e o governo. Para evitar o caos, faz-se qualquer coisa, veja o caso da praça da Paz Celestial. Sabia que iria acabar em sangue. Hoje não é mais necessário: os estudantes não querem saber de política, só de fazer dinheiro.
G2
Acho um delírio acreditar que EUA e China possam resolver os problemas do mundo. Mas se os dois tiverem mais convergências e trabalharem juntos, fica mais fácil convencer Europa, Rússia, Japão, Índia, Brasil e vários outros países a seguirem os consensos.
IGUALDADE
Em 1940, eu me filiei à Juventude Radical na universidade e depois ao Partido Comunista dos EUA. Mas os comunistas americanos queriam seguir a política externa soviética, e deixei o partido. Ao partir para a China, após estudar chinês no Exército, vi o cotidiano das tropas comunistas. Soldados recebiam alfabetização, a comida era compartilhada, oficiais podiam ser criticados pelos subalternos e havia escolha de líderes em votações. A sociedade igualitária com que eu sonhava.
NO CASTELO
O premiê Zhou Enlai disse uma vez que, quando eles eram estudantes, queriam invadir as muralhas e enfrentar os senhores da guerra que se escondiam em Pequim. "Um dia, virão derrubar os muros", ele disse, caso os comunistas se encastelassem na Cidade Proibida. Apesar das muitas viagens de Mao, a elite do partido se encastelou e passou a crer nas fantasias que os aduladores contavam.
REFORMA AGRÁRIA
Mao ouvia que as comunas eram um sucesso, mas acreditou nessa fantasia. Nunca funcionaram. Os camponeses se juntaram aos comunistas porque sonhavam ter um pedaço de terra, um sonho antigo no país. Quando houve a reforma agrária, a produtividade se multiplicou. O camponês chinês andava cabisbaixo, sempre olhando para o chão, e passou a andar ereto, orgulhoso.
MODELO STÁLIN
Mao dizia que em 1911, quando Sun Yat-sen declarou a República, as grandes potências não queriam que a China emergisse. Rússia, França, Reino Unido tinham seus "senhores da guerra" na China, fazendo negócios e aterrorizando o país.
Em 1939, Mao escrevia sobre a "nova democracia" e dizia que a China sofria não por ter muito capitalismo, "mas por ter pouco". Dizia que as cooperativas deveriam conviver com as estatais, com a iniciativa privada, com a reforma agrária. Entre 1949 e 1951, ele passou a seguir Stálin, com a economia planejada, a ditadura do proletariado, com as comunas.
10 ANOS DE PRISÃO
Na solitária, consegui manter a saúde mental recitando poemas, lembrando de histórias, atuando performances cômicas. A literatura defendeu minha sanidade. Quando fiquei em prisão domiciliar em 1967 por alguns meses, o único colega estrangeiro que se atreveu a me visitar foi o brasileiro Jayme Martins. Ele falava pouco chinês. Eu não falava português, mas nos entendíamos com mímica e misturando idiomas. Foi um bravo.
FONTE AMERICANA
Nunca fui tratado como espião ou traidor nos EUA. Em Pequim, em 1977, o então chefe do escritório comercial americano [não havia embaixada] me convidou para ver "Guerra nas Estrelas" no telão. Eu tinha perdido meu passaporte americano em 1946!
Ao voltar aos EUA, em 1980, era visto como fonte de informação sobre a China. Passei dias sendo entrevistado no Departamento de Estado, sem nenhum constrangimento. [O atual enviado especial americano para Afeganistão e Paquistão,] Richard Holbrooke, era subsecretário de Estado para a Ásia e disse que muitos antecessores jamais conversariam comigo. Respondi que me negaria a falar com muitos dos seus antecessores. E nos demos muito bem. Nem CIA, nem FBI jamais me interrogaram. Deviam me achar inofensivo.
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