Os recentes conflitos comerciais entre China e EUA em perspectiva
Heitor Figueiredo Sobral Torres
Mundorama - iREL-UnB
12 de Outubro 2009
Em meados do mês de setembro, o governo norte-americano aprovou tarifas de importação sobre pneus fabricados na China e comprados por comerciantes e industriais dos EUA. O valor inicial da taxa, válido para o primeiro ano após a aprovação da medida, chega a 35% do valor de pneus chineses para veículos leves, como automóveis comuns e caminhões. Para o segundo e o terceiro ano da tarifa, o valor cairá respectivamente para 30 e 25% do valor de importação dos produtos.
Apesar de a medida ter sido justificada pelo governo norte-americano como uma salvaguarda temporária – a partir do seu projeto inicial e aprovado, a tarifa durará três anos – relativa a um produto cuja importação de produtores chineses cresceu de 14,6 milhões para 46 milhões de unidades entre 2004 e 2008 no mercado dos EUA, o governo chinês não parece ter aquiescido à decisão da administração Obama. Mesmo negando uma suposta represália à tarifa norte-americana, nos dias seguintes à aprovação da taxa o governo chinês ameaçou levar o caso ao escrutínio da Organização Mundial do Comércio, alegando violação dos termos que permitiram à China ingressar na Organização e que possibilitaram aos EUA aceder ao ingresso do país asiático no regime de comércio mundial.
Se por um lado o governo norte-americano argumenta o seu direito de impor salvaguardas a produtos chineses – possibilitadas até doze anos após a entrada da China na OMC, isto é, até 2013 –, líderes chineses replicam por meio da natureza unilateral da tarifa e das dificuldades que o setor exportador do seu país vem enfrentando no contexto da crise financeira, em que a redução das importações e o incentivo ao protecionismo vem se intensificando como modos de combater os efeitos recessivos da crise. Em seguida, o governo chinês ainda levou à investigação da OMC as exportações de peças de automóveis e frangos pelos EUA como suspeitos de dumping.
A imposição da tarifa sobre pneus fabricados na China pode ser, a despeito das acusações, pelas autoridades chinesas, de unilateralismo na decisão, agrupada com uma série de práticas de cunho protecionista desse primeiro ano da administração Obama. Cedendo à pressão dos trabalhadores sindicalizados do setor de aço – que também inclui aqueles empregados na fabricação de pneus – para proteger a produção doméstica, o governo Democrata se coloca em claro contraste com a resistência Republicana durante o governo Bush a assentir a esse tipo de demanda. Entre 2001 e 2008, a Comissão de Comércio Internacional dos EUA recomendou ao Executivo a imposição de taxas sobre produtos chineses em quatro oportunidades, com a alegação de irregularidades na produção e exportação desses bens; a presidência negou as quatro recomendações.
Em pelo menos duas ocasiões anteriores o atual governo norte-americano manteve essa disposição em proteger o mercado interno. Em março, a atual composição do Congresso, de maioria Democrata, emitiu uma proibição à circulação de caminhões mexicanos em áreas próximas à fronteira entre México e EUA, revertendo uma diretriz de paulatina liberalização dos transportes entre os dois países que remonta a mais de uma década de negociações no âmbito do NAFTA. Mesmo antes, durante a elaboração do plano de recuperação econômica – o American Recovery and Reinvestment Act, orçado em cerca de 800 bilhões de dólares – que praticamente acompanhou a posse do atual governo, uma cláusula apelidada Buy American foi incluída no plano. Visando a incentivar a compra de materiais de construção de fabricação local, a cláusula, a despeito de protesto de parlamentares Republicanos e do governo canadense, se manteve no texto aprovado.
Em um contexto mais amplo, as reiteradas medidas tendentes ao protecionismo do governo Obama atritam com o compromisso firmado nos recentes encontros do G-20 – o último deles em Pittsburgh, em outubro, e o precedente em Londres, no último mês de abril – quanto à importância do livre-comércio para a superação da atual crise financeira. Crucialmente, trata-se de um atrito provocado pela nação que mais contribuiu para moldar os contornos do atual regime de comércio multilateral, pautado pelo princípio do livre-comércio que orienta instituições desde Bretton Woods, passando pelo GATT, pelo FMI, pelo Banco Mundial e pelo G-7 até os atuais formatos da OMC e do G-20.
As ações dos EUA, contudo, não têm sido isoladas. Um relatório recente do Global Trade Alert indica que, em termos quantitativos, medidas “discriminatórias” para o comércio exterior são seis vezes mais numerosas que medidas “liberalizantes” na legislação doméstica dos países. Aquelas incluiriam não só tarifas abertamente destinadas a dificultar importações, mas também regras que favoreçam instituições nacionais ou políticas sanitárias que venham a restringir importações. Tal cifra converge com a expectativa da OMC de que o comércio mundial será 10% menor em 2009 se comparado ao volume de 2008.
Também vai ao encontro da sensação de que o combate e a superação da atual crise financeira têm se concentrado nas esferas domésticas de decisão, não no âmbito sistêmico e/ou multilateral. Diferentes países têm adotado diferentes estratégias, cada uma delas baseada em uma diferente percepção dos principais pontos em dificuldade nas suas economias nacionais e dos modos de superação dessas dificuldades. Por isso não são incompreensíveis dados recentes apontando que certos países ainda se encontram em recessão, enquanto outros atingiram o patamar mais baixo anteriormente e agora se encontram em um novo ciclo ascendente. Como pano de fundo, variáveis macroeconômicas mais perenes, como a taxa de desemprego, o nível do déficit público e as perspectivas de crescimento a longo prazo, também se mostram idiossincráticas no cenário mundial.
Essa lógica de combate à crise, fundamentada em ações nacionais que seguem apenas superficialmente diretrizes sistêmicas e/ou multilaterais, não é nova nem apresenta efeitos intrinsecamente negativos em sua implantação. Afinal, economias nacionais possuem características peculiares e são soberanas para encontrar soluções adequadas a tempos de dificuldades. Porém, a escassez de ações concertadas internacionalmente se opõe às expectativas construídas logo após a eclosão da crise, no fim de 2008, quanto ao modo como se daria o combate, o controle e a superação da turbulência financeira. O G-20 se impôs, desde o ano passado, como um foro virtualmente capaz de lidar com questões cuja resolução é de interesse comum – como a alardeada “nova arquitetura financeira internacional”. Além disso, fortaleceu os papeis do FMI e do Banco Mundial em uma direção que permitia vislumbrar maior proeminência às economias emergentes. Enfim, o G-20 parecia se estabelecer como um espaço de deliberação de novos mecanismos de governança econômico-financeira global. A consolidação da lógica de combate à crise fundamentada em ações nacionais com mínimo grau de concerto está, evidentemente, em clara oposição a essas expectativas.
Pode-se argumentar que ações protecionistas como as encetadas pelo governo norte-americano podem ser vistas como mecanismos legítimos de resposta a um contexto de crise e de dificuldades econômicas para algumas parcelas da população local, não como ações de longo prazo e/ou longo alcance. Essa foi uma observação insinuada pelo diretor-geral da OMC e é a base da justificativa do governo-americano para a imposição da tarifa sobre os pneus fabricados na China. Por outro lado, é recorrente a constatação de que práticas protecionistas são de difícil eliminação e, logo, não são condizentes com um compromisso sistêmico em relação ao livre-comércio. Medidas protecionistas reforçam os interesses paroquiais de certos setores da economia nacional – ou seja, aqueles beneficiados pela prática discriminatória – e estimulam o seu comportamento de rent-seeking, o que dificulta sobremaneira a posterior eliminação dessas práticas.
Portanto, colocando os recentes conflitos comerciais entre China e EUA em perspectiva, além de introduzir as questões de uma possível escalada protecionista no comércio mundial e do combate à crise financeira na esfera nacional em mínimo concerto com o nível sistêmico, pode-se afirmar que há uma tendência contrária às expectativas iniciais de combate, de controle e de superação da atual crise fundamentados na defesa do livre-comércio, na harmonização de políticas nacionais a nível sistêmico e na construção de novos mecanismos de governança econômico-financeira global. Se os membros do G-20 permanecem comprometidos a agir dessa maneira, maior atenção deve ser dedicada a casos presumivelmente isolados como o das escaramuças comerciais entre China e EUA.
Heitor Figueiredo Sobral Torres é Membro do Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais da Universidade de Brasília – PET-REL e do Laboratório de Análise em Relações Internacionais – LARI (e-mail).
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