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Enfrentando rupturas
Antonio Barros de Castro
Valor Econômico, 28/08/2009
Economia Mundial: Em algum momento, países e empresas terão de enfrentar o desafio de reposicionar-se em um novo mapa econômico e geopolítico
"A Ásia terá um papel de grande destaque , em que se fará o aproveitamento da natureza de forma mais amigável e mais criativa" (na foto, autopistas em Xangai)
O período em que vivemos é profundamente marcado pela ascensão da China, pela tomada de consciência de que a nave espacial Terra não comporta a universalização dos padrões modernos de consumo - fenômeno aparentemente em pleno curso, e que tem como símbolo a expansão contemporânea da economia chinesa - e pela crise financeira internacional.
A ascensão da China, historicamente, só tem paralelo na emergência dos Estados Unidos no fim do século XIX. A derrocada financeira recentemente verificada, por sua vez, só encontra paralelo na crise de 29. E a própria questão ecológica, nas dimensões que vem adquirindo, tampouco tem precedente.
Cada um desses megaeventos seria capaz, isoladamente, de induzir transformações substantivas nas mais diferentes economias. A combinação dos três, contudo, leva a uma verdadeira ruptura com o que conhecemos. O mundo que temos pela frente é outro, e os êxitos e fracassos na assimilação ou aproveitamento desses megaeventos dominarão por um bom período a evolução da economia mundial.
Atores internacionais como o Banco Mundial e o FMI tratarão, primordialmente, é de se presumir, de questões associadas à crise financeira. Já a ascensão da China, bem como certas manifestações e consequências da crise financeira internacional, introduzem questões que, por sua natureza e extrema diferenciação entre os países, devem ser enfrentadas e respondidas por políticas nacionais - e, claro, num outro plano, pelas empresas, em sua permanente busca da criação de valor, em contextos agora profundamente alterados.
O que acaba de ser dito põe em evidência o que genericamente podemos denominar de desafio do "reposicionamento", com que mais cedo ou mais tarde haverão de se defrontar, países e empresas. Há que reconhecer, de saída, que este é um tema vaga ou insuficientemente percebido e jamais sistematicamente discutido. Ele comporta extremos: há casos - os países bálticos e a Islândia seriam exemplos - levados à UTI pela crise financeira e que tiveram, a seguir, os seus aparelhos simplesmente desligados. A bem dizer, o esquema ao qual essas economias estavam se integrando inicialmente, aliás, com grande sucesso, não existe mais, e elas teriam de ser "reinventadas", vale dizer, profunda ou radicalmente reposicionadas. No extremo oposto existem economias, sobretudo na África, que emergiram do caos e da marginalidade para uma expansão vertiginosa e que têm chances de retomar um forte crescimento, após o tropeção por que acabam de passar. Muito dependerá, no caso, do desempenho da economia chinesa - vale dizer, do fôlego e intensidade do seu crescimento - e da capacidade possivelmente por elas construida de introduzir reposicionamentos, digamos, marginais, na sua trajetória evolutiva.
Alguns traços dominantes do mapa econômico e geopolítico que está se desenhando já podem ser percebidos.
No que toca à China, o desempenho nos próximos anos comporta duas visões antagônicas. Trata-se, para alguns, de uma economia em que o crescimento é puxado pelas exportações e, mais tipicamente, pelas compras americanas. Como os Estados Unidos se encontram, ao que tudo indica, condenados a reduzir substancialmente o seu déficit de transações correntes, os que compartilham essa visão vêm com ceticismo o prosseguimento do crescimento chinês. Discordam dessa interpretação os que vêm no dinamismo chinês uma versão atualizada - e acentuadamente peculiar ou diferenciada - do êxito histórico da Alemanha em fins do século XIX, do Japão e, contemporaneamente, da Coreia e da Irlanda, entre outras experiências de emparelhamento ("catching-up").
Em cada uma dessas experiências de industrialização retardatária foi montada uma máquina de crescer que rapidamente absorvia progresso técnico, permitindo ao país queimar etapas na absorção e difusão de novas tecnologias e formas de organização da produção. Vista nessa perspectiva, a função das exportações é, sim, de puxar a demanda, mas, também, e, decisivamente, de facultar o acesso a novas tecnologias. Este último objetivo pode, inclusive, tornar-se dominante, ali onde - como é o caso da China contemporânea - o esforço de investimento é particularmente intenso e o mercado doméstico é vasto e promissor. A razão entre investimento e crescimento na China, da ordem de quatro (40% do PIB de investimento, 10% de crescimento médio), sugere, aliás, numa primeira aproximação, uma considerável eficiência na absorção e domínio de novas técnicas, por parte das empresas e dos trabalhadores em geral. Como, além disso, o país conta com notável blindagem financeira (US 1,2 trilhão de reservas) e um sólido quadro macroeconômico, é bastante plausível supor que a máquina de crescer chinesa poderá prosseguir longamente em operação - beneficiando os mercados de matérias-primas e energia, e contribuindo para o crescimento dos fornecedoras desses produtos.
Voltêmo-nos momentaneamente para as economias desenvolvidas, a propósito das quais um verdadeiro consenso aponta no sentido de um difícil e modesto crescimento nos próximos anos. O problema com esse tipo de visão é que se atribui excessivo destaque às sequelas deixadas pelo endividamento (de empresas, famílias e, não raro, poderes públicos), uma vez iniciada a atual crise financeira. Há que ter em conta, além disso, que em diversos casos o crescimento pré-crise dependeu, em grande medida, das finanças e da construção civil - o Reino Unido e a Espanha são as referências óbvias. Em outras palavras, esse tipo de argumento deixa de lado o fato de que, para alcançar o crescimento sustentável, essas economias têm que fazer muito mais do que lamber as feridas deixadas pela crise do crédito. É preciso, minimamente, descobrir algo que entre no lugar dos setores ou segmentos que puxavam anteriormente o crescimento. Em outras palavras, além de (penosamente) liquidar as travas deixadas pelo elevado grau de endividamento, há que reposicionar-se, cavando espaços próprios, frente a mercados severamente disputados, seja no exterior, seja no âmbito doméstico. E entram aqui em cena o megaevento China e seus efeitos. Vejamos porquê.
Existem diferenças substanciais entre os países desenvolvidos, havendo casos em que a especialização na fase pré-crise se mostra, digamos, projetável. A Alemanha, por exemplo, exportava em massa equipamentos para a Ásia, e não tem porque abandonar essa fértil divisão internacional do trabalho. O que dizer, porém, daqueles países cujo crescimento dependeu, em boa medida, das finanças e da construção civil? É claro que, inicialmente pelo menos, seus problemas não provêm da China e sim do colapso financeiro contemporâneo. Na medida, contudo, em que essas economias não cresçam nos próximos anos, a superioridade tecnológica frente à China, ali onde porventura ainda exista, rapidamente desaparecerá - tornando mais estreitas ou limitadas as possibilidades de realocar recursos, visando renovar e ampliar a geração de valor. Mais que isso, podem vir a ser seriamente colocadas em questão estruturas e acordos internacionais que presentemente não apenas impedem que o câmbio reflita as dificuldades enfrentadas por essas economias, como dificultam o emprego de políticas públicas para apoiar seu reposicionamento.
O tamanho e a natureza das dificuldades que acabam de ser apontadas são intimidadores. Mas há que ter em conta que reposicionamentos abrangentes e profundos foram levados a efeito no passado pelos países que puseram exitosamente em marcha (houve certamente fracassos) o seu processo de "catching up". Há, aqui, que aproveitar, crítica e criativamente, possíveis lições da história. Além disso, é fundamental destacar que há países mais e menos aptos ou bem dotados para ingressar num mundo em que a implosão financeira deixou profundas marcas, em que a Ásia terá um papel de grande destaque, em que o aproveitamento da natureza será feito de forma mais amigável e, sobretudo - aqui, também - mais criativa.
Antonio Barros de Castro é professor emérito do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), assessor da presidência do BNDES e organizador do seminário "Reposicionamentos Estratégicos, Políticas e Inovação em Tempos de Crise", que ocorre entre 1º e 3 de setembro na UFRJ
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